terça-feira, janeiro 21, 2025

A arte de viver

Louis Aragon e Elsa Triolet filmados por Agnès Varda (Elsa la rose, 1966)

Como pensar a cultura sem ter em conta as suas componentes televisivas? Há quem tenha medo que isso aconteça — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 janeiro).

Recordo-me de um tempo jornalístico e, em boa verdade, social bem diferente do actual. Numa publicação em que trabalhei, participei num debate sobre a própria definição de cultura — e também, por isso mesmo, sobre o posicionamento do jornalista perante as dinâmicas culturais. Foi há 30 anos e perdi esse debate.
Em boa verdade, continuo a perder. Os valores que, melhor ou pior, tentei defender continuam a ecoar no presente. Entenda-se: não alimento a ilusão de, em cada momento, formular ideias capazes de transcender o desgaste do tempo, mas também não posso, quanto mais não seja por fidelidade a mim mesmo, abdicar de reformular pontos de vista a que continuo a reconhecer alguma pertinência.
O debate saldou-se pela ideia segundo a qual o espaço televisivo não faz parte da vida cultural — o que, bem entendido, continuo a considerar uma ideia pueril, tendencialmente populista. Quando observo os nacionalismos balofos associados ao futebol ou a impudência estética com que a Reality TV encena a intimidade afectiva e sexual, não vejo apenas a ligeireza irresponsável com que os meus oponentes encaravam, e encaram, o “entretenimento” televisivo. Vejo, sobretudo, o triunfo de uma cultura de profundo esvaziamento humano e humanista que, ao longo das últimas décadas, se foi instalando em todos os circuitos comunicacionais e publicitários da sociedade portuguesa, para mais perante a apatia da quase totalidade da nossa classe política.
A instalação quotidiana dessa cultura que privilegia a ostentação das performances contra a riqueza e o prazer das ideias continua a ser alimentada por muitos elementos da política (políticos propriamente ditos e comentadores) que, não poucas vezes, utilizam a sua obscena teatralidade para elaborar a mecânica da sua própria ascensão. Os cruzamentos do comentário futebolístico com as carreiras políticas constituem, aliás, um sintoma eloquente da nova cultura triunfante.
[Assembleia da República]
Do outro lado deste espelho de imagens perversas, está a cultura “clássica”. A saber: as obras resultantes das chamadas práticas artísticas (cinema, música, teatro, etc.) que passaram a ser tratadas em muitas zonas da paisagem mediática, não como acontecimentos específicos capazes de motivar, eventualmente desafiar, a nossa visão do mundo, antes como uma espécie de resgate do nosso medo de ideias minimamente criativas. Quando isso pode ser sancionado por alguma celebração dos mortos que nos assombram, dir-se-ia que, cobardemente, recobrimos com o nosso conformismo as belas palavras herdadas de Aragon: “Vi tanta gente viver tão mal / E tanta gente morrer tão bem.”
Não disto é cómodo, muito menos humanamente compensador, para os que tentam preservar o statu quo num misto de pânico intelectual e demissão de pensamento. Até porque os formatos mais grosseiros do “debate” político começam a expor as fissuras da sua concepção. Em tempos recentes, descubro mesmo algumas vozes que, no pequeno ecrã, com toda a pertinência, chamam a atenção para o modo como muitas formas da política passaram a existir como farsa televisiva. Exemplo recorrente: o partido Chega promove um qualquer evento mais ou menos exuberante e, por cego automatismo, os ecos desse evento acabam por dominar uma semana inteira de “notícias” (fenómeno em parte semelhante aconteceu, há poucos anos, com a proliferação de comunicados e declarações públicas do Bloco de Esquerda).
Tudo isto acontece tendo como pano de fundo um silêncio ensurdecedor. Quem foi o político que, num breve instante de lucidez, arriscou lembrar que, nas discussões sobre o Orçamento Geral do Estado, talvez valesse a pena colocar a gestão cultural como (mais) uma prioridade? E onde está o comentador que, por mera pedagogia, tenha enunciado tal prioridade? Resta-nos a consolação de continuar a haver milhões para investir num Mundial de Futebol…

>>> Citando Aragon — Je Vous Salue Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard.