quinta-feira, dezembro 26, 2024

Sob o signo de Rossellini

Anna Magnani em Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini

A dicotomia “informação/opinião” faz parte da dinâmica do espaço televisivo; cada vez mais é urgente pensar o seus impasses — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 dezembro).

Algumas intervenções recentes nos meios de comunicação têm reflectido a urgência de questionar certas formas de “jornalismo” que estão a poluir as virtudes clássicas de um sistema audiovisual de informação que se quer democrático. Como espectador, não posso deixar de celebrar a muito básica, mas essencial, lucidez e pedagogia de tais intervenções.
Por exemplo, chamando a atenção para o facto de algumas linguagens televisivas funcionarem como ecos automáticos de todo o tipo de agitação verbal ou iconográfica gerado por um partido como o Chega. Porquê e, sobretudo, para quê transformar em compulsão mediática aquilo que, em boa verdade, foi concebido apenas para criar ruído audiovisual?
Cristina Ferreira
Ou ainda, outro exemplo: reconhecendo que, com os inflacionados “painéis de opinião”, alguns dispositivos televisivos favorecem uma sociedade em que a clássica e incontornável dicotomia deontológica “informação/opinião” se vai decompondo perante os nossos olhos e ouvidos. E, a meu ver, não apenas porque o menosprezo por um dos factores (“informação”) tende a favorecer a obscena proliferação do outro (“opinião”) — também porque aquilo que se produz em alguns modos de programação não passa de uma vozearia que se alimenta da sua própria promiscuidade intelectual, afinal favorecendo os que usam a tolerância democrática para fazer passar as mais torpes insinuações contra o sistema que os acolhe.
Há outras maneiras de dizer isto, não esquecendo o lugar-comum que todos repetem — “vivemos numa sociedade de imagens” —, mas poucos arriscam pensar. Permito-me, por isso, citar o parágrafo seguinte, a propósito de uma série de “análises” sobre o 25 de Abril.
“A vaga de debates sobre o 25 de Abril deixa um estranho depósito de amargura. Como se a razão fundamental de tais debates tivesse sido a necessidade de redistribuir culpas, mais do que repensar factos. Cenário de uma ferida familiar com cura adiada. Há nessa sensação incómoda um sinal inevitavelmente revelador: os vencedores do 25 de Abril (militares e políticos) não conseguiram sedimentar um discurso claro — e claramente afirmativo — que penetrasse, sem traumas por resolver, no imaginário colectivo da história, da nossa história.”
Vitorino Nemésio
É uma auto-citação. Com um detalhe que, pelo menos para mim, não é secundário: foram escritas em 1994, ano das comemorações dos 20 anos do 25 de abril. Não me sinto abençoado por nenhuma “razão” capaz de superar os sobressaltos das décadas, mas também não me satisfaz o insulto paternalista que, há 30 anos, conheci como opção editorial. A saber: “Os críticos de cinema não percebem nada de televisão”. Talvez, mas preocupam-se com o facto de haver um modelo televisivo de tratamento da nossa história que se esgota num alarido de celebração da “liberdade” que tende a rasurar a complexidade do nosso passado colectivo — incluindo o passado televisivo.
Afinal de contas, a democracia tem Cristina Ferreira a dominar os nossos ecrãs, enquanto o Estado Novo propunha Vitorino Nemésio em horário nobre… Dá que pensar, sobretudo se pensarmos também que reflectir sobre os crimes da ditadura salazarista não é o mesmo que encenar o 25 de Abril como a porta de entrada num paraíso sem mácula.
Repito: uma proposta de reflexão deste teor não me coloca do lado de uma “razão” intocável ou indiscutível. Sou apenas sensível à necessidade, de uma só vez política e ética, de não abdicar de pensar o modo como o sistema televisivo passou a ser o principal (o único?) factor de organização da nossa vida social.
Nessa medida, revejo-me ainda e sempre nas palavras serenas de Roberto Rossellini, na altura reflectindo sobre o papel do Estado face à evolução do espaço televisivo: “Devemos exigir que se abra, no seio das televisões europeias, um autêntico debate sobre a missão da televisão, sobre as pesquisas a desenvolver para inventar as novas linguagens que, em função de um grande número de sinais, somos levados a pensar que são aguardadas pela sociedade contemporânea” — são palavras de 1972.