segunda-feira, dezembro 16, 2024

“Reality TV”
— como se destrói o humanismo

Como começou o Big Brother televisivo? A mini-série francesa Culte (Prime Video) revisita as suas origens através da história do nascimento da respectiva versão francesa, intitulada Loft Story: um belo exercício de ficção que nos confronta com a violência afectiva da “televisão da realidade”.

Há mais de vinte anos, a vulgaridade da “Reality TV” ocupa espaços e tempos muito significativos nos nossos ecrãs caseiros, mas a reflexão sobre a formatação audiovisual de tão triste fenómeno é praticamente nula. Não acontece assim em França, como se prova pela excelente mini-série Culte, agora disponível, em “streaming”, na Prime Video (em paralelo com a actual programação na versão francesa da mesma plataforma). É pena que a Prime Video não encare com especial interesse a difusão de Culte. Desde logo porque a série surge apresentada com textos em inglês. Como se isso não bastasse, as legendas disponíveis são em francês (com informações complementares sobre os sons), inglês ou holandês… nada em português. No meio da pompa tecnológica que a maior parte das plataformas gosta de exibir, será que, no seu interior, já não há quem dedique algum tempo a pensar as especificidades culturais dos consumidores?
Entenda-se: não se trata de celebrar Culte como um acontecimento banalmente “temático”. Estamos perante um trabalho de rigorosa concepção narrativa, a começar pela realização de Louis Farge, orientada por um fundamental princípio (temático, precisamente): trata-se de abordar a “Reality TV”, não através de qualquer abstração descritiva ou crítica, mas como um dispositivo gerado por formas concretas de trabalho — neste caso, a criação, em 2001, de Loft Story, variação francesa do Big Brother. Além do mais, os autores da série, Matthieu Rumani e Nicolas Slomka, souberam escolher um elenco de talentosos intérpretes, impecavelmente dirigidos, mostrando que é possível ocupar os ecrãs caseiros com algo bem diferente dos estereótipos das novelas.
Tudo começa com a personagem de Isabelle de Rochechouart (Anaïde Rozam, que vimos, por exemplo, em Paris, 13, produção de 2021 realizada por Jacques Audiard). Na empresa produtora de Philippe Palazzo (Nicolas Briançon), Isabelle e os colegas especulam sobre a possibilidade de criar um programa de “Reality TV” que siga o modelo do Big Brother: um conjunto de pessoas fechadas numa casa durante algumas semanas, permanentemente observadas pelas câmaras, tudo transformado num espectáculo de “animais de feira” (a expressão está nos diálogos) em que as exclusões regulares dos concorrentes resultarão do voto “popular”…
Culte inspira-se em personagens verídicas, nomeadamente John de Mol, fundador da Endemol, a empresa que lançou o Big Brother — aqui, temos Liam de Lint (Koen de Bouw), em qualquer caso, como esclarece uma legenda inicial, não um “duplo”, mas uma figura ficcionada, como acontece, aliás, com todas as personagens da série. Aquela que estará mais “próxima” do que aconteceu será Loana (notável composição de Marie Colomb), claramente inspirada em Loana Petrucciani, concorrente da edição inaugural de Loft Story. Descoberta como bailarina de um cabaret em Nice, Loana é uma personagem de recorte trágico, com uma história pessoal pontuada por muitas agruras e violências que viriam a ser exploradas pela produção, incluindo, contra a sua vontade expressa, a divulgação de imagens do filho cuja guarda lhe fora retirada pela assistência social.

O que é o humanismo?

Sem descurar a complexidade dos factos, incluindo as obscenas manipulações de montagem efectuadas pela produção de Loft Story, os seis episódios de Culte expõem o cruel processo de destruição de qualquer visão humanista dos que surgem na “televisão da realidade”. Tudo isso cruzado com as negociações de bastidores que envolvem a exploração das rivalidades financeiras entre os canais M6 e TF1. Nesta perspectiva, Culte é um parente próximo de Unreal (2015-18), notável série americana, também sobre a produção de um programa de “Reality TV” (já difundida pelos canais TVCine).
Os horrores afectivos potenciados pelo ambiente retratado não envolvem qualquer demonização “generalista” da própria televisão como sistema de comunicação. Aliás, o contraponto é tanto mais interessante, por vezes estranhamente comovente, quanto Culte não desiste do humanismo — e da compaixão humanista — que Loft Story transforma em lixo mediático.
Com uma “coincidência” no mínimo perturbante: Alexia Laroche-Joubert, produtora do Loft Story original, inspiradora da personagem de Isabelle, é também um dos nomes que surge na ficha de produção de Culte. Em defesa dos seus direitos de imagem? É provável, não sabemos. Seja como for, eis um detalhe que nos recorda que a televisão é sempre o contrário da candura naturalista.