Martial Solal em 1960 [New York Times] |
Martial Solal, compositor indissociável da Nova Vaga francesa, faleceu no dia 12 de dezembro, contava 97 anos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 dezembro).
A cinefilia faz-se do gosto, do prazer e também da exigência de contemplar as imagens dos filmes, respeitando a sua complexidade, logo a sua história, e também os enigmas da beleza que as pode habitar. Em qualquer caso, semelhante descrição é insuficiente, inadvertidamente favorecendo o automatismo dos olhares em que vamos sendo viciados por algumas formas de televisão (e muitas linguagens da publicidade). Importa, por isso, acrescentar que a relação com as imagens raras vezes pode ser dissociada dos sons que, mesmo acidentalmente, as acompanham.
Penso na música de Martial Solal. Penso, sobretudo, no misto de alegria, precisão e elegância do seu piano. Ao ler a notícia da sua morte — no dia 12, em Versalhes, contava 97 anos —, surgem-me as imagens e os sons de À Bout de Souffle/O Acossado (1960), a longa-metragem de Jean-Luc Godard que, como nenhum outro título, simbolizou o arranque da Nova Vaga francesa.
A sua banda sonora reflecte a cumplicidade criativa do jazz com alguns dos momentos emblemáticos desse movimento que, de facto, transfigurou a história de todo o cinema, muito para lá das fronteiras francesas. Assim, em 1959, Solal tinha já contribuído com alguns temas para a banda sonora de Dois Homens em Manhattan, de Jean-Pierre Melville, sem esquecer que, um ano antes, a música de Fim de Semana no Ascensor, de Louis Malle, tinha assinatura de Miles Davis [video, c/ Jeanne Moreau].
Podemos, aliás, pressentir a riqueza do legado de Solal lembrando a espantosa diversidade do seu trajecto fora do cinema — escute-se, por exemplo, o seu derradeiro concerto, a 23 de janeiro de 2019 (aos 91 anos!), na Salle Gaveau, em Paris, editado no álbum Coming Yesterday (Challenge Records, 2021). Para lá de uma vasta discografia em nome próprio, lembremos também as muitas colaborações com nomes como Sidney Bechet, Stéphane Grappelli ou Dave Douglas.
Refaço, assim, mentalmente, algumas cenas de À Bout de Souffle, a começar pelo encontro de Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, aliás Michel Poiccard e Patricia Franchini, nos Campos Elísios. Ele diz-lhe: “Sim, é uma patetice, amo-te.” Ela espanta-se de o rever ali, uma vez que ele lhe tinha dito que “detestava Paris”. Michel responde: “Não disse que detestava, disse que tenho aqui muitos inimigos.” E Patricia pergunta: “Então, está em perigo?”
É preciso acrescentar que Patricia anda a vender o New York Herald Tribune (cuja publicação terminaria em 1966). A composição de Solal para este breve diálogo (intitulada, precisamente, “New York Herald Tribune”) pode servir de padrão para todo um modo de entendimento da relação da música com a “acção”. Não se trata de criar um pano de fundo, dir-se-ia uma cortina de sons, para “sustentar” a duração da cena: a música existe como elemento vivo da narrativa, com as suas notas, melodia e ritmo, incluindo os repectivos silêncios.
Tudo isto pode ser condensado numa palavra mágica, vital na história do jazz: improvisação. O obituário de Solal no jornal Le Monde definia-o através de uma bela lista de qualidades: “compositor, arranjador, chefe de orquestra e rei da improvisação” (fazendo lembrar, a meu ver, o fraseado poético de um outro pianista e compositor, o americano Erroll Garner). Ao mesmo tempo, nada disso exclui a procura de uma lógica estrutural que, em cinema, se confunde com a arte da montagem.
Naquela que julgo ser a mais completa edição da banda sonora de À Bout de Souffle (Soundtrack Factory, 2016), disponível no YouTube, encontramos algumas palavras de Solal que resumem exemplarmente tal atitude criativa: “Godard destrói deliberadamente todas as formas clássicas de construção. Na música, eu não cheguei tão longe quanto ele: tentei sempre avançar mantendo uma certa estrutura, uma certa legibilidade. Ao mesmo tempo, é verdade que partilhamos a mesma atitude anti-académica.”
À Bout de Souffle: Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg nos Campos Elíseos |
>>> Obituário na revista DownBeat.