segunda-feira, dezembro 23, 2024

Jean-Luc Godard
— o cinema que nasceu da pintura

Retrato de Jean-Luc Godard, c. 1950; auto-retrato de 2022

O cinema de Jean-Luc Godard pode ser visto e revisto, pensado e reavaliado, também através do seu trabalho de imaginação e preparação dos filmes. De facto, ele é autor de uma fascinante “obra plástica” que, agora, pode ser descoberta na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, em Serralves, até 18 maio 2025 — para celebrarmos os valores da cinefilia (este texto foi publicado no Diário de Notícias, 15 novembro).

Casa do Cinema Manoel de Oliveira
Num tempo de enfraquecimento do cinema no espaço televisivo tradicional, com as plataformas de streaming raras vezes organizadas de forma motivadora, é caso para perguntar: que é feito da cinefilia? Entre as respostas que podemos encontrar, algumas no próprio circuito comercial, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira, na Fundação de Serralves, no Porto, merece um destaque muito especial. De facto, a equipa dirigida por António Preto continua a desenvolver um exemplar trabalho de divulgação e programação que, agora, apresenta uma notável exposição dedicada à obra plástica de Jean-Luc Godard (1930-2022).
Não será surpresa dizer que a filmografia daquele que, na década de 1960, foi um dos nomes carismáticos da Nova Vaga francesa — não apenas através dos filmes, mas começando pela intervenção crítica — envolve uma dimensão “plástica”. Em qualquer caso, tal reconhecimento não deixa de suscitar uma dúvida metódica: como é que essa dimensão gerou uma “obra”?
Pois bem, tal obra começa por existir como actividade paralela à gestação dos filmes. Bem sabemos que Godard, enquanto criador de um movimento de autores tão talentosos quanto díspares, todos eles empenhados em discutir as regras narrativas clássicas, nunca se dedicou a construir argumentos que satisfizessem essas regras — num desabafo lendário, terá dito que até se podia considerar que os seus filmes, à maneira clássica, tinham “princípio, meio e fim”, ainda que “não necessariamente por essa ordem”. Ao mesmo tempo, a sua nova ordem (que está longe de ser uma desordem banalmente “vanguardista”) pode começar nas imagens organizadas em cadernos de apontamentos cujas matérias vão desde o desenho e a pintura até à reprodução de obras fotográficas e pictóricas.

Página dupla do caderno de preparação
de O Livro de Imagem (2018)

O amor do cinema

O mínimo que se pode dizer da exposição patente em Serralves (ao longo dos próximos seis meses, até 18 de maio) é que se trata de um verdadeiro trabalho de amor — será preciso recordar que a palavra cinefilia designa o amor do cinema?Mais ainda: foi feito a partir do interior do universo do próprio Godard, envolvendo o seu espaço mais íntimo e, literalmente, a sua família genealógica e artística.
A exposição apresenta-se com um título em que as componentes narrativas surgem enredadas com a actualidade, nomeadamente através de um jogo de palavras (“conta” dá lugar a “conto”), revelador da alegria criativa de muitas formas “godardianas”. Ou seja: “Tendo em linha de conto os tempos atuais”. A sua curadoria pertence a Fabrice Aragno, Jean-Paul Battaggia, Nicole Brenez e Paul Grivas (sobrinho de Godard), todos ligados às últimas duas décadas da actividade do cineasta, incluindo a produção de filmes e a escrita teórica. Aplicando um trocadilho cúmplice da obra de Godard, esse colectivo adoptou a designação “Ô Contraire!”
O impacto dos materiais expostos é tanto mais impressionante, por vezes tocado por uma comoção muito íntima, quanto podemos descobrir alguns “segredos”, não apenas da trajectória de um cineasta, mas também das suas vivências familiares e sociais. Assim, por exemplo, a par de fotografias da juventude, deparamos com um caderno “panfletário” (Le Cercle de Famille), ainda da década de 1940, em que o adolescente Godard expõe as suas muitas reticências e revoltas perante os valores da burguesia a que pertence a sua própria família.
As fotografias de família, tiradas por sua mãe, Odile Monod, nunca mostradas antes, aparecem lado a lado com outras raridades, muitas delas também desconhecidas do público. A exposição em Serralves surge, por isso, como um evento fundador de um novo capítulo no conhecimento de um universo que sempre se distinguiu por uma agilidade tecida de curiosidade e inteligência. Isto sem esquecer que, para lá dos cadernos de trabalho, ligados à preparação de determinados filmes, há objectos com uma singular componente afectiva. É o caso do caderno dedicado a La Chinoise (1967), feito depois da rodagem do filme e oferecido à actriz principal, Anne Wiazemsky (com quem Godard foi casado entre 1967 e 1979).
Entenda-se, por isso: os materiais expostos, não por acaso acompanhados por diversos objectos do dia a dia (das tesouras aos charutos...), estão longe de se esgotar na função de “preparação” dos filmes. No limite, são derivações antecipadas ou posteriores desses filmes, como se Godard quisesse sublinhar — antes do mais para si próprio — que o cinema não existe como um fim em si mesmo, sendo antes uma entidade de uma constelação de fenómenos criativos em que a pintura ocupa um lugar nuclear. Assim se prolonga um axioma do pintor francês Maurice Denis (1870-1943), citado no programa como definição da modernidade: “recordar que um quadro, antes de ser um cavalo de guerra (...), é essencialmente uma superfície plana coberta de cores numa ordem determinada”.

Alguns objectos pessoais,
incluindo tesouras e um charuto

Livros & imagens

À sua maneira, a exposição pode ser encarada também como uma antologia de história(s) de várias décadas da vida (francesa, e não só), uma vez que os seus objectos e imagens arrastam memórias muito diferenciadas — desde o clássico O Círculo Vermelho (1970), realizado por Jean-Pierre Melville (que interpretava o escritor entrevistado em 1960, em O Acossado, primeira longa-metragem de Godard), até aos testemunhos mais ou menos caóticos, divertidos e sedutores, das experiências de Godard com os smartphones.
Nesta perspectiva, importa recordar os laços com uma outra exposição “godardiana” — “Éloge de l’image - Le Livre d’Image” —, integrada na programação do LEFFEST de 2023, concebida por Fabrice Aragno. Tratava-se de um conjunto de variações cénicas e audiovisuais sobre O Livro de Imagem (2018), derradeira longa-metragem de Godard, também amplamente evocada em Serralves.
Agora, podemos identificar melhor — e, de algum modo, percorrer — um método de trabalho que, realmente, trata as imagens como livros. Dito de outro modo: tudo é escrita, tudo é linguagem, tudo envolve a responsabilidade de um criador e, assim se deseja, de um espectador.
Tudo isto, é bem verdade, está desde muito cedo inscrito no labor de Godard como uma espécie de canône de introspecção e criação. Lembremos o exemplo cristalino de Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967), tendo como ponto de partida a decomposição das relações humanas, do espaço público até à intimidade sexual (“ela”, recorde-se, é a “região parisiense”). Assumindo a voz off do seu filme, Godard diz a certa altura: “No mundo humano, o nascimento das coisas mais simples, a sua apropriação pelo espírito do homem, um mundo novo em que os homens, ao mesmo tempo que as coisas, viverão relações harmoniosas — eis o meu objectivo. É, afinal, tão político como poético. Explica, em qualquer caso, a raiva da expressão. De quem? De mim, escritor e pintor”.
Para ilustrar essa visão multifacetada, dialéctica, pontuada por muitas formas de um desconcertante humor, a exposição “Tendo em linha de conto os tempos atuais” prolonga-se através de um ciclo de filmes marcados pela relação do criador com a criação, por vezes tendendo para as regras do auto-retrato — lembremos o exemplo modelar de JLG por JLG (1994), a par de vários documentos filmados sobre Godard com assinatura de alguns dos responsáveis pela exposição.
Sublinhando o valor simbólico de tudo isto, logo à entrada, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira recorda um célebre diálogo entre Godard e Oliveira, tema de capa da edição de 4/5 de setembro de 1993 do jornal Libération. Nessa publicação, encontramos uma apreciação do trabalho de Godard por Oliveira que envolve um elogio radical da liberdade artística, podendo funcionar como lema desta fascinante exposição: “É disto que gosto em geral no cinema: uma saturação de signos magníficos banhados na luz da sua ausência de explicação”.

Marina Vlady em Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967):
um cineasta que é escritor e pintor

>>> Trailer de La Chinoise (1967).