terça-feira, dezembro 31, 2024

Da Índia, com amor

Kani Kusruti no quotidiano de Mumbai

Distinguido com o Grande Prémio do Festival de Cannes, Tudo o que Imaginamos como Luz tem assinatura de uma cineasta indiana, Payal Kapadia, que sabe trabalhar os artifícios da ficção sem recusar elementos de raiz documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 dezembro).

Graças ao poder primitivo de mostrar as coisas “como elas são” (ou, pelo menos, como aparentam ser), diz-se, e com razão, que o cinema consegue superar todas as diferenças culturais: o particular atrai uma dimensão universal. Ou ainda: há histórias de ambientes muito diferentes daqueles em que as descobrimos, sem que isso as impeça de nos tocarem pela verdade da sua dimensão humana. Eis um belo exemplo: Tudo o que Imaginamos como Luz (título inglês: All We Imagine as Light), produção da Índia com a colaboração de financiamentos de vários países europeus (França, Holanda, Luxemburgo e Itália).
Distinguido em maio com o Grande Prémio do Festival de Cannes, o filme escrito e realizado por Payal Kapadia — nascida em Mumbai, em 1986 — poderá ser definido como um peculiar melodrama em que as singularidades das personagens são indissociáveis da riqueza documental dos cenários em que tudo acontece. Nesta perspectiva, Tudo o que Imaginamos como Luz prolonga a experiência da primeira longa-metragem de Kapadia, Noite Incerta (2021), um documentário de fascinante ambivalência narrativa em que as tensões de uma universidade se cruzavam com as memórias mais ou menos oníricas das personagens principais.
Envolvidas nos muitos azuis da direcção fotográfica de Ranabir Das, as cenas de Tudo o que Imaginamos como Luz vão evoluindo como breves vinhetas de um tempo de muitas azáfamas em que as protagonistas parecem lutar para se exprimirem para lá das rotinas do quotidiano. São três mulheres que trabalham num mesmo hospital de Mumbai, habitando um mundo em que as pequenas e grandes convulsões coexistem como manifestações de algo que, no limite, como sugere o título, podemos “imaginar como luz”. Entenda-se: como um outro mundo, menos cruel, de maior vibração afectiva.
Dir-se-ia que estamos perante um exercício de reportagem que colhe e acolhe os elementos da ficção, não como um contraste, mas um complemento de um olhar cinematográfico, triste e esperançoso, pela infinita fragmentação do tecido urbano de Mumbai. A câmara de Kapadia distingue-se por um misto de fluidez dramática e rigor visual (e sonoro!) que coloca o espectador no lugar certo, muito próximo mas não “voyeurista”, para contemplar os gestos — por vezes, para pressentir os pensamentos — daquelas três mulheres.
Num dos momentos emocionalmente mais intensos de Tudo o que Imaginamos como Luz, vemos a enfermeira Prabha (Kani Kusruti) a salvar um homem de um possível afogamento através de um processo de reanimação cardiopulmonar. Subitamente, o cinema ocupa essa terra de ninguém em que vida e morte parecem dialogar em silêncio, convocando o espectador para uma intimidade marcada por uma beleza sem fronteiras — a Índia está aqui tão perto.