sexta-feira, novembro 22, 2024

Martin Scorsese
— a solidão radical do cinema

Foi no começo da década de 1960 que Martin Scorsese teve, pela primeira vez, a ideia de filmar uma vida de Jesus — o livro Conversas sobre a Fé (ed. Casa das Letras), formado por diálogos entre o realizador e o jesuíta e teólogo Antonio Spadaro, evoca esse facto, cruzando-o com uma reflexão plural sobre a filmografia do cineasta.

Martin Scorsese
Procurando esclarecer os muitos cruzamentos do cinema e da fé na vida de Martin Scorsese, a certa altura Antonio Spadaro questiona-o sobre o facto de ter pensado “num filme sobre Jesus desde os anos sessenta”. Numa longa resposta, Scorsese recorda que cresceu numa família em que “ninguém lia livros” em paralelo com o facto de, desde muito cedo, o levarem a ver filmes com regularidade. Fala da conjugação, no seu olhar, da “arte na igreja” com o “movimento num ecrã”, recorda os estudos no Washington Square College (que se tornou a New York University) e refere esse projecto do começo da década de 1960: “Naquela altura queria fazer a história de Jesus: 16 mm, a preto e branco, nos dias de hoje, filmado no Lower East Side, nos prédios degradados e em Bowery, culminando na crucificação nas docas do rio Hudson, junto à West Side Highway… que já lá não está.”
Para Scorsese, a aproximação cinematográfica da personagem de Jesus começou, assim, pontuada por um desejo de realismo indissociável da sensibilidade de uma nova geração de cineastas que terá tido a sua “bandeira” na primeira longa-metragem de John Cassavetes, Shadows/Sombras (1959), uma crónica novaiorquina rodada em 16 mm, a preto e branco.
Scorsese acabou por desistir do projecto, em 1964, quando viu O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, reconhecendo que o autor de Accattone (1961) e Mamma Roma (1962) já tinha concretizado aquilo que, para ele, não passou de um sonho. Permaneceu o essencial: o fascínio por personagens, não autobiográficas, mas com ecos muito pessoais e obsessivos, vivendo as convulsões de uma tragédia íntima centrada na possibilidade (ou na impossibilidade) do triunfo do Bem e, mais do que isso, na reconciliação de cada uma dessas personagens com os seus próprios fantasmas — encarnação exemplar de tal lógica dramática seria Johnny Boy, em Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto (1973), primeira presença de Robert De Niro no universo de Scorsese.
Scorsese é o primeiro a reconhecer e sublinhar que, antes mesmo de ter realizado a sua “trilogia religiosa” — A Última Tentação de Cristo (1988), Kundun (1997) e Silêncio (2016) —, encontramos na sua filmografia várias personagens assombradas por uma missão, concreta ou imaginada, que os ultrapassa e, mais do que isso, ameaça destruir. É o caso do motorista de taxi Travis Bickle, em Taxi Driver (1976) e do pugilista Jake La Motta, em O Touro Enraivecido (1980), este múltiplas vezes evocado no livro com Spadaro. Com duas colaborações que estão longe de ser secundárias na dinâmica temática e narrativa de toda a obra de Scorsese: são personagens interpretadas por Robert De Niro e ambos os filmes têm como base argumentos de Paul Schrader (no segundo, com a colaboração de Mardik Martin).

Dois romances

No centro de tudo isto está, obviamente, A Última Tentação de Cristo, adaptando o romance de Nikos Kazantkakis (disponível com o título A Última Tentação, Edições 70, 2023). O Cristo interpretado por Willem Dafoe é um ser empenhado em afirmar uma irredutibilidade divina que não emana de nenhuma entidade institucional, nem se aquieta num conceito geográfico, nacional ou político. Como diz Dafoe, a certa altura, questionando a multidão dos seguidores de Cristo: “Pensam que Deus vos pertence? Não pertence. Deus é um espírito imortal que pertence a todos, a todo o mundo. Pensam que são especiais? Deus não é um israelita!”
É na impressionante cena da crucificação que o Cristo de Scorsese enfrenta o silêncio do Céu com a pergunta da mais radical solidão: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” É a mesma pergunta que Shusaku Endo destaca no seu Uma Vida de Jesus (edições Asa, 2002), precisamente o romance que deverá servir de base a um filme (A Life of Jesus) que Scorsese tem vindo a preparar e adiar ao longo das últimas décadas. Daí também a incompreensão manifestada pelos discípulos face à tenacidade, e à recusa de espectáculo, com que Jesus defende o primado do Amor. Ou como escreve Endo: “Decididamente, o discípulos eram exactamente como nós, um punhado de homens banais, fracos e cobardes.”