Metropolis (1927): a tragédia do trabalho e do tempo |
Nos ecrãs caseiros, o directo televisivo passou a ser o retrato simplista das nossas vivências sociais — ete texto foi publicado no Diário de Notícias (1 setembro).
Cada vez que ouço um leitor de notícias televisivas, ou um dos seus repórteres, a proclamar que aquilo que nos está a ser mostrado acontece “em tempo real”, sinto vontade de lhes perguntar: quando é que o tempo é irreal?
Meio século depois do 25 de abril, a democracia gerou este invencível tabu: não se fazem perguntas sobre o dia a dia na televisão, não se discutem as suas linguagens e os respectivos efeitos sociais. Para lá de muitos contrastes interiores (por vezes fascinantes, não é isso que está em causa), a paisagem televisiva impôs — democraticamente, sem dúvida — uma cultura feita de avalanches de novelas, futebol e Reality TV. A reflexão sobre o tratamento do tempo esbarra, assim, na mesma pueril vulgaridade com que, noutro domínio (mas talvez seja o mesmo…), continuamos a usar a expressão “sexo explícito”, também sem perguntar, por exemplo, que qualidades reconhecemos no “sexo implícito” das telenovelas.
Nada disso interessa os regentes do nosso imaginário audiovisual, quase todos empenhados na mesma tarefa ideológica: garantir que as linguagens do pequeno ecrã não possam ser assunto de reflexão, consagrando-as como produto de um “naturalismo” sem alternativa. Daí o simplismo da expressão “em tempo real” — estar em tempo real seria o triunfo de um qualquer directo televisivo.
O directo televisivo passou mesmo a ser aplicado como apoteose do próprio “conceito” de televisão. Todos os dias, nas televisões de todo o mundo, há exemplos de “enviados especiais” a muitos milhares de quilómetros de distância, protagonizando directos em que se limitam a repetir as mesmas informações que ouvimos pela boca do “pivot” em estúdio. Porquê? Sobretudo: para quê? Para os vermos num cenário alternativo… em tempo real.
Há outra maneira de dizer isto, perversamente marxista nas suas raízes, ainda que as esquerdas tenham desistido de enfrentar a sua complexidade, enquanto as direitas, heroicamente, se dão ao luxo de nunca terem pensado no assunto. É uma maneira que decorre da lógica dominante dos mercados: o tempo, sobretudo se for possível colar-lhe o adjectivo “real”, é uma mercadoria altamente rentável. Veja-se o futebol: pagamos quantias obscenas para ver os jogos em directo porque, em boa verdade, o “tempo real” é, neste caso, de modo muito literal, uma insubstituível mais-valia.
Para mal dos nossos pecados, o tempo obstina-se em ser sempre visceralmente real. Porquê? Porque o tempo de um desastre tratado em apocalípticas horas de imagens e palavras redundantes é tão real para todos nós, consumidores, quanto o tempo do pesadelo mais perturbante é real para o seu incauto sonhador.
Não há maneira de “irrealizar” o tempo porque também não há maneira de dele sair. Quem gosta de cinema, sabe isso: a vertigem de uma comédia burlesca de Woody Allen ou uma aventura galáctica filmada por Stanley Kubrick são o que são porque acontecem no interior de uma duração temporal da qual não há saída possível — mesmo a ficção mais delirante partilha connosco o tempo de uma experiência inevitavelmente real.
Recordemos o exemplo modelar do clássico mudo Metropolis (1927), de Fritz Lang: as barreiras materiais e simbólicas que separam operários e patrões são, certamente, evidentes, mas se tais barreiras alimentam as convulsões da tragédia, isso decorre do carácter inelutável do tempo em que todos existem e que, de alguma maneira, partilham — sem esquecer que, no filme, os relógios têm mostradores de 10 horas, a duração de um turno de trabalho.
Ainda que através de componentes muito diferentes, comunismo e catolicismo pontuaram o século XX com a crença num “além” em que tudo se harmonizaria — um outro tempo, portanto. As respectivas crises contemporâneas são também o espelho do aniquilamento da dimensão sagrada nas nossas sociedades. Agora, “em tempo real”, temos o ecrã televisivo para fingirmos que acreditamos na patética coerência social das nossas solidões. Tudo isso é tão óbvio que só me resta pedir desculpa ao leitor pelo tempo que lhe tomei.