domingo, outubro 27, 2024

Bruno Reidal
— uma nova história da loucura

Dimitri Doré no papel de Bruno Reidal: memórias trágicas

Bruno Reidal - Confissões de um Assassino encena a história verídica de um crime cometido em 1905 por um jovem seminarista: descobrimos, assim, o trabalho de Vincent Le Port, cineasta capaz de expor os contrastes mais perturbantes do factor humano — ete texto foi publicado no Diário de Notícias (29 agosto).

Neste tempo de filmes enredados na monotonia do politicamente correcto, apenas empenhados em satisfazer um discurso “edificante” que já está consumado (e consumido) antes mesmo do filme começar a ser projectado, que fazer face a um objecto tão estranho e impressionante como é Bruno Reidal - Confissões de um Assassino, primeira longa-metragem do francês Vincent Le Port (n. 1986)? Talvez começar por lembrar que o cinema não é uma colecção de sermões moralistas para reforçar o sonambulismo cultural de uma audiência de “talk show”…
Que está, então, em jogo neste filme revelado em 2021, na Semana da Crítica de Cannes? Pois bem, uma história (verídica) vivida no ano de 1905, no departamento de Cantal, no centro-sul do mapa de França. Bruno Reidal é um jovem seminarista que mata um rapaz de 12 anos, de imediato entregando-se às autoridades — de forma esquemática, podemos dizer que o filme se organiza como uma memória didáctica do processo de interrogação de uma junta de médicos, tentando compreender de onde provém a violência brutal de Reidal, aliás desde o primeiro momento reconhecida pelo próprio.
Na frieza metódica da sua exposição, Bruno Reidal - Confissões de um Assassino não terá muitas experiências paralelas na história do cinema. Para o leitor eventualmente interessado em explorar esse desafio narrativo de encenar o mal absoluto, recordo um outro exemplo, também francês, datado de 1976: Moi, Pierre Rivière, de René Allio, sobre o caso de um jovem que, na Normandia, em 1835, assassinou vários familiares — na base do argumento do filme estão documentos compilados por Michel Foucault (1926-1984), no âmbito das suas investigações dos anos 50/60 sobre as doenças mentais e a história da loucura.
Dir-se-ia que Le Port criou uma espécie de capítulo zero para uma nova história da loucura, tanto mais concisa e perturbante quanto é o próprio Bruno Reidal que surge como narrador do seu destino trágico. O crime que ele comete envolve um radicalismo cuja obscenidade é ampliada pelo facto de a sua vítima acabar por resultar de uma escolha “acidental”. Mais do que isso: Reidal aceita expor — e, mais do que isso, escrever — a sua confissão, desde o primeiro momento reconhecendo, com infinitos detalhes, que nele existe um ziguezague perverso entre a pulsão sexual e o impulso assassino.
O filme é “apenas” o relato desse processo confessional em que o factor humano se expõe para lá de qualquer hipótese romanesca ou redentora. Há um misto de serenidade e coragem na “mise en scène” de Le Port, relatando esta odisseia sangrenta como uma história que não é exterior a esse factor, antes expõe as convulsões internas daquilo que habitualmente apelidamos de “natureza humana”. A não esquecer: a sua linguagem precisa e descarnada encontra o eco adequado no espantoso trabalho do estreante Dimitri Doré, intérprete de Bruno Reidal.