terça-feira, setembro 17, 2024

Baby Reindeer
— a solidão segundo Richard Gadd

Richard Gadd e o seu ecrã: quem és tu?

A série Baby Reindeer é um caso invulgar de enfrentamento da complexidade das relações humanas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 agosto).

Nos últimos largos meses, a mais surpreendente ficção audiovisual que descobri foi Baby Reindeer, mini-série escrita e protagonizada pelo actor escocês Richard Gadd (n. 1989), estreada em abril na Netflix. Surpreendente de modo muito literal: que dizer? Aliás, o que pensar? E, sobretudo, como pensar?
[FOTO: Stanley Morgan]
Partindo de vivências do próprio autor, é ele que assume a personagem central de Donny Dunn, empregado de um bar que quer construir uma carreira como comediante. Donny conhece Martha Scott, interpretada por Jessica Gunning, quando, um dia, ela lhe aparece, no bar onde ele trabalha, num estado de prostração que desencadeia a sua compaixão. Oferece-lhe uma bebida para mais tarde, a pouco e pouco, Martha se transformar numa stalker que o persegue e ameaça, em frente de sua casa, em lugares públicos, através dos circuitos da Internet — 40 mil e-mails são a crua contabilidade desse processo em que o sarcasmo da comédia de costumes vai sendo contaminado por elementos de descarnado horror.
Em termos “sociais”, a série foi rapidamente catalogada através do “tema” do assédio, desaparecendo no caldeirão mediático em que tudo decorre de uma equívoca homogeneidade — os chamados assuntos fracturantes passaram a ser rentabilizados como mercadoria “informativa”.
Lembremos, por isso, que, a par de Martha, há em Baby Reindeer outra figura particularmente maléfica para os destinos do protagonista: Darrien (Tom Goodman-Hill), um argumentista de televisão que se assume como mentor de Donny e que, de facto, através do uso de drogas e uma violenta manipulação sexual, o explora de modo brutal. Li um número razoável de abordagens de Baby Reindeer na imprensa de vários países e fui reparando que uma aparente omissão acidental correspondia, de facto, a um padrão “descritivo”: não exagero se disser que, nuns bons 90% de tais abordagens, a personagem de Darrien não é sequer citada.
Dito de outro modo: as formas correntes do primarismo jornalístico (incluindo algumas formas de intervenção crítica) passaram a tratar os objectos de televisão, cinema ou literatura em função de uma importância mecânica, sem pensamento, previamente atribuída aos respectivos “temas”. Na prática, isso significa que as maiores mediocridades e os trabalhos mais sérios e complexos (como é o caso de Baby Reindeer) são metidos no mesmo saco, anulando-se mutuamente.
Entenda-se: nada se trata de sugerir que houve uma vontade consciente de apagar as componentes malignas da história contada por Gadd. Não estamos perante uma questão de consciência, mas de algo oposto: inconsciência. O tratamento da ficção, não como uma textura específica de relação com um leitor/espectador, mas uma mera acumulação de “temas”, faz com que se desconheçam as singularidades do trabalho narrativo — toda a gente fala de “narrativas”, quase ninguém as pensa.
Nem mesmo as próprias declarações de Gadd conseguiram alterar os lugares-comuns que se abateram sobre Baby Reindeer. No passado mês de abril, numa entrevista à edição britânica da revista GQ, ele lembrava que podemos compreender a atitude indulgente de Donny em relação a Martha, acrescentando: “Quis mostrar que Darrien foi violentamente maligno, enquanto o comportamento de Martha provém de um universo de profunda vulnerabilidade.”
No panorama das actuais narrativas, Baby Reindeer surgiu, assim, como um invulgar enfrentamento dos enigmas das nossas relações, mesmo (ou sobretudo) os mais bizarros e perturbantes. O certo é que, à sua volta, prevaleceu a lógica dos “talk shows” mais moralistas em que apenas se procura catalogar as pessoas (e o mundo inteiro) em função de matrizes pueris, sem verdadeiro desejo de conhecimento. Baby Reindeer possui a energia, e também a sofisticação, da paixão dos velhos modelos melodramáticos — e não será por acaso que, no interior daquele esquematismo de raiz televisiva, a palavra “melodrama” é aplicada com conotações pejorativas. Na solidão do seu desejo, Donny descobre que nada sabe sobre o desejo do outro, não há salvação na saturação de “comunicações” em que vivemos. Bem-vindos à tragédia.