Erland Josephson e Lena Olin em Depois do Ensaio: o teatro no coração do cinema |
Até 2 de outubro, continua a decorrer em várias cidades do país o ciclo de 31 filmes de Ingmar Bergman. Depois do Ensaio (1984) é um dos títulos que nunca estreara no circuito comercial, uma obra-prima minimalista sobre o fascínio do palco — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 agosto).
Sendo Ingmar Bergman (1918-2007) um nome tão universal, eis uma informação que pode parecer absurda, mas que não deixa de ser totalmente objectiva: no ciclo de 31 dos seus filmes que a Leopardo Filmes continua a apresentar em várias cidades do país, há quatro títulos inéditos no circuito comercial das salas de cinema. Cidade Portuária (1948) e A Sede (1949) surgiram logo no começo do ciclo, a 14 de julho; a partir de hoje começam a ser exibidos Mulheres que Esperam (1952) e Depois do Ensaio (1984) — o ciclo prolonga-se até 2 de outubro.
Embora Mulheres que Esperam seja um belo exemplo do modo como o cineasta sueco retratou as singularidades do feminino (20 anos antes de Lágrimas e Suspiros, vale a pena recordar), é o fascinante Depois do Ensaio que justifica um destaque muito especial. A começar por uma razão, de uma só vez artística e industrial, tantas vezes esquecida: o filme ilustra a disponibilidade de Bergman, a par de outros mestres europeus (Rossellini, Godard, Antonioni) para trabalhar no território televisivo. Estamos, de facto, perante uma produção que, na origem, é um telefilme, como tal tendo sido difundido, há cerca de 40 anos, nos mais diversos canais europeus, incluindo a RTP1.
Poderá perguntar-se: qual a diferença? Em boa verdade, nenhuma, a não ser no financiamento e no enquadramento prático da produção — o que, desde logo, é bem revelador de um conceito criativo de televisão em que as rotinas das novelas e seus derivados (ou, mais recentemente, os horrores da Reality TV) não são dominantes. Na prática, para Bergman, tratava-se de regressar a uma temática transversal a todo o seu trabalho — o lugar do teatro nos circuitos labirínticos das relações humanas —, agora num registo de imaculado minimalismo.
Tudo acontece entre o encenador Henrik Vogler e a actriz Anna Egerman, personagens interpretadas, respectivamente, por Erland Josephson, um dos actores da “família” bergmaniana, e Lena Olin, no papel que a projectou na cena internacional (surgiria, quatro anos mais tarde, em A Insustentável Leveza do Ser, sob a direcção de Philip Kaufman). O título é para ser tomado à letra: depois de um ensaio de Um Sonho, de August Strindberg, Vogler deixa-se ficar no palco, num misto de reflexão e sonolência, até que aparece Anna, à procura de uma pulseira que perdeu…
O que acontece durante pouco mais de uma hora (tudo é minimalista, até mesmo a duração do filme) decorre de uma visão em que Bergman relança o teatro, ou melhor, a teatralidade como componente vital do seu cinema. Não exactamente porque o cenário de Depois do Ensaio seja um palco; antes porque as personagens e o espectador oscilam entre as evidências do dia a dia e os sinais de um mundo alternativo de que a palavra (teatral, justamente) é um espelho perverso — descubra-se a breve participação de Ingrid Thulin. Ou como diz Vogler: “Os mortos não estão mortos, os vivos parecem fantasmas.”