quarta-feira, agosto 28, 2024

A igreja flutuante

Holly Hunter e William Hurt em Broadcast News (1987): onde está a verdade?

Que acontece quando a luta política é uma questão de ecrãs? Afinal de contas, é nesse mundo que estamos a viver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 agosto).

Revisito as memórias de um dos filmes mais brilhantes que já se fizeram sobre televisão: Broadcast News, uma produção de 1987 com argumento e realização de James L. Brooks (entre nós estreado como Edição Especial). Aliás, corrijo a generalização: o espaço televisivo apresenta-se de tal modo fragmentado, habitado por inconciliáveis maravilhas e horrores, que não faz sentido tratar a televisão como “um” tema — é preciso descortinar e, de algum modo, confrontar as muitas diferenças que o habitam.
Lembrei-me de Broadcast News porque nele ecoa uma questão que, por vias bem diferentes, assombra muitos dos actuais protagonistas do pequeno ecrã, dos jornalistas mais sérios aos concorrentes do Big Brother. A saber: o que é a verdade? E como dizê-la? Ou mostrá-la?
A certa altura, no filme, uma produtora de um canal de informação (Holly Hunter) interroga-se sobre a entrevista feita pelo jornalista-vedeta da sua estação (William Hurt) a uma mulher que foi vítima de violação. Observando a totalidade do material registado para a entrevista, percebe que o grande plano do rosto do jornalista a chorar perante o testemunho da mulher não pertence à entrevista — foi forjado a posteriori.
A moral da história projecta-nos num terreno incómodo: a dicotomia verdade/mentira não esgota tudo o que está em jogo. Não se trata apenas de discutir as virtudes de reprodução (ou os artifícios de encenação) que marcam o dia a dia do pequeno ecrã: o sistema de linguagens de que se faz a televisão, ainda que vendido como “reprodução” do mundo, pode funcionar, de facto, como imposição de uma determinada concepção desse mesmo mundo.
Apesar da sua fina sensibilidade crítica, o filme de James L. Brooks está ainda ligado a uma visão liberal inerente à história clássica de Hollywood, anterior à vertigem de ecrãs em que hoje vivemos. Afinal de contas, movendo-se com arrogante à vontade no interior dessa vertigem, Donald Trump dinamitou a questão da produção da verdade, todos os dias celebrando as apoteoses das mais risonhas ficções — agora, alguns jornais dos EUA (aconteceu há dias no New York Times) relatam mesmo cada comício de Trump contrapondo uma lista didáctica das mentiras por ele propagadas.
Como é que Kamala Harris aparece nesta cenografia de infinitos fragmentos narrativos e, mais do que isso, de incessantes “mensagens” para serem vistas nos ecrãs que povoam o nosso mundo? Eis a difícil conjuntura: deixámos de ter ecrãs que “reproduzam” esse mundo, passámos a viver (nem sempre muito felizes, é verdade) num mundo feito de ecrãs.
As pessoas e entidades que apoiam Kamala Harris compreenderam que Trump há muito investira no fogo fátuo desse mundo de imagens, sendo necessário (politicamente necessário, entenda-se) arriscar no interior das suas coordenadas, sinalizando algumas fundamentais diferenças. Resta saber de que modo, ou até que ponto, o que está a acontecer irá contribuir para a reposição da nobreza do debate político ou, apesar de todas as boas vontades democráticas, poderá reforçar a nossa condição de reféns dos delírios imateriais dos ecrãs que nos consomem.
Quase quatro décadas depois de Broadcast News, Philippe Sollers dava conta da perversa evolução de todo esse aparato informativo no romance La Deuxième Vie (edição póstuma: Gallimard, março 2024). Sou eu que traduzo: “No oceano dos computadores, a televisão brilha como uma igreja flutuante. Cada vez mais planetária, ela tece a rede de um governo mundial. A estupidez vive sobre-informada através da sua ignorância. Vagas de filósofos auto-proclamados lucram com isso e peroram, a horas fixas, sobre todos os assuntos.”
Não é, por isso, ficção científica reconhecer que toda a dinâmica comunicacional das próximas eleições americanas ecoará de forma muito concreta nas práticas audiovisuais e políticas de ambos os lados do Atlântico. Que vão fazer os sacerdotes da informação e os actores da cena política que, mesmo sem nada para dizer, vivem de “aparecer” nos ecrãs? Serão capazes de desistir da preguiça da rotina, escolhendo os sobressaltos da inteligência?