Cravos e Clematites num Vaso de Cristal (c. 1882), de Édouard Manet |
Será que ainda somos capazes de olhar com olhos de ver para um quadro de Manet? Não é certo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 agosto).
Como e quando aconteceu a desvalorização da beleza? Observe-se a avalanche quotidiana de imagens — da Reality TV aos concertos da chamada música pimba — e o modo como a sua sistemática difusão promove e, mais do que isso, procura naturalizar muitas formas de fealdade. O simples reconhecimento de tal estado de coisas é, ou poderia ser, um vector central de qualquer política cultural. E afigura-se tanto mais significativo quanto importa contornar, ou melhor, superar o infantilismo reinante de muitos discursos sobre o belo.
[ BeauxArts ] |
Importa revalorizar a utilização da palavra “beleza”. Não é fácil, muito menos simples, contribuir para qualquer clarificação do problema, quanto mais não seja porque, da imprensa mais medíocre até ao uso populista dos admiráveis poderes televisivos, assistimos todos os dias ao triunfo de um conceito de beleza ocupado (como se fosse uma ocupação militar) pela vacuidade intelectual e a depressão existencial de “influencers”, vedetas da auto-ajuda, sacerdotes do bem estar universal, etc.
Evitemos, por isso, a vulgaridade estética e os seus agentes. Não se trata de discutir a beleza da pessoa A ou B, eventualmente a comparação da sua beleza com X ou Y. A fulanização da beleza constitui, aliás, o complemento tosco de um pensamento que não ultrapassa as banalidades correntes do marketing e reduz o mundo a mecanismos de “personalização” — há mesmo quem nos queira convencer que, da escolha do mais recente creme depilatório até à descoberta íntima de Deus, tudo é “personalizado” e passível de ser tratado com receitas mágicas herdades de mezinhas medievais.
O desafio que a conjuntura nos coloca é bem diferente — e é, sobretudo, de outra dimensão. O que está em jogo não é a beleza desta ou daquela pessoa, deste ou daquele objecto: é, isso sim, o modo como olhamos o mundo à nossa volta. Ou ainda: a capacidade que temos (ou, definitivamente, perdemos) de construir laços criativos, inteligentes e contagiantes entre o que nos é dado ver e, se possível, a partilha daquilo que vemos com os outros. Nesta perspectiva, a beleza pode ser uma questão de imagens, mas é também, talvez seja mesmo sobretudo, o aparato de circuitos, valores e pensamentos com que reconhecemos que habitamos um espaço comum.
[ Taschen ] |
Nada a ver com um saber “superior” enraizado no reconhecimento prévio de Manet como personalidade incontornável na história da pintura. Entenda-se: o que está em jogo não é a confirmação da informação contida na ficha da Wikipedia dedicada a Manet (muito útil, reconheço), mas sim a percepção de que o quadro que contemplamos nasce de algo radical e insubstituível. A saber: uma relação. Talvez duas: primeiro, a do pintor com “aquilo” que decidiu partilhar connosco; depois, a do olhar de cada um de nós com o olhar do pintor.
Por que não expor este quadro numa emissão de televisão? Por que não mostrá-lo em silêncio, 60 segundos apenas, para ser visto no nosso ecrã caseiro?
São perguntas de um lirismo selvagem. Perante o estado das coisas constituem, pelo menos, uma arma legítima de reflexão. Afinal de contas, se se gastam horas, dias, semanas a perorar sobre as crises psicológicas que têm pontuado a carreira de João Félix (a quem manifesto a minha solidariedade), será assim tão escandaloso supor que talvez seja salutar não nos esquecermos de Manet? Não tenho a pretensão se supor que sei exactamente o que temos a ganhar, mas observo com tristeza o que vamos perdendo.
>>> Documentário de Jacques Vichet sobre Édouard Manet (2015).