sábado, julho 13, 2024

O Amor segundo Dalva
— crianças, adultos, corpos e desejos

Zelda Samson, uma genuína revelação no papel de Dalva

A partir da história de uma menina abusada sexualmente pelo pai, Emmanuelle Nicot assina um retrato de invulgar subtileza e comoção: O Amor Segundo Dalva foi consagrado como melhor filme do ano nos Prémios Magritte do cinema belga — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 junho).

Revelado na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2022, o filme belga O Amor Segundo Dalva estreou-se no seu país em 2023. No ano corrente, a 9 de março, foi consagrado nos Prémios Magritte (os “óscares” do cinema da Bélgica), recebendo um total de sete distinções, incluindo melhor filme e melhor realização, para Emmanuelle Nicot. A realizadora (nascida em França, em 1985), estreante na longa-metragem, foi ainda distinguida nas categorias de melhor primeiro filme e melhor argumento. Os restantes prémios foram para Sandrine Blancke (melhor actriz secundária), Zelda Samson (revelação do ano) e a equipa de Aline Gavroy (melhor som).
Digamos, para simplificar, que um palmarés deste género nos chama a atenção para as singularidades do objecto em causa — sem esquecer, aliás, que, em Cannes, O Amor Segundo Dalva já tinha valido a Zelda Samson o prémio revelação da Fundação Louis Roederer, tendo sido também reconhecido pela FIPRESCI (crítica internacional) como melhor filme das secções paralelas. Tudo isto para sublinhar a dificuldade, de uma só vez narrativa e moral, que o filme de Nicot decide enfrentar. A saber: fazer o retrato íntimo de Dalva, “criança-mulher” abusada sexualmente pelo pai.
A composição de Zelda Samson é absolutamente decisiva para o impacto emocional de O Amor Segundo Dalva. Não estamos, de facto, perante o “culto” das vítimas como mecanismo de exploração obscena, típico de alguns dispositivos televisivos apenas empenhados em gerar sensacionalismo. O que, entenda-se, não significa simplificar, muito menos suavizar, a perturbante saga de Dalva — importa, por isso, ter em conta a riqueza cinematográfica do projecto.
Sob a minuciosa direcção de Nicot, a muito jovem Samson consegue encarnar o misto de candura e monstruosidade em que vive Dalva: a sua condição de “amante” do pai acontece através de uma manipulação que não depende de um sistema visível de repressão, antes funciona a partir de um metódico, infinitamente cruel, esmagamento da sua identidade. Daí a sua reação à observação de Jayden (Alexis Manenti), seu cuidador na instituição em que é acolhida depois da prisão do pai: quando ele lhe recorda que ela é uma “criança”, Dalva reage dizendo que não, que é uma “mulher”.
Para filmar tais convulsões, subtilmente transfiguradas quando reaparece a personagem da mãe (a já citada Sandrine Blancke, numa composição tão breve quanto fulgurante), Nicot usa uma câmara ligeira, com algo de documental, que se foca em dois elementos nucleares: por um lado, o corpo de Dalva, incluindo os detalhes de guarda-roupa e caracterização com que ela encena a sua condição de impossível adulta; por outro lado, o uso de alguns discretos planos subjectivos de Dalva, permitindo-nos perceber ou, pelo menos, pressentir o modo como a sua visão do mundo decorre de uma arquitectura imaginária dos corpos e dos desejos que ela própria desconhece. Filme genuinamente excepcional (no sentido literal de excepção), O Amor Segundo Dalva poderá definir-se como a história convulsiva de uma libertação.