segunda-feira, julho 08, 2024

Françoise Hardy
— todos os rapazes e raparigas

Memórias, música e poesia de 1962

O legado de Françoise Hardy é feito de muitas palavras: vêm de um passado que fala para o nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 junho).

Françoise Hardy morreu no dia 11 de junho — contava 80 anos. Em 2012, lançou o romance L’Amour Fou (ed. Albin Michel, Paris), começando assim: “Era como se a estrada, até lá muito linear, se transformasse em impasse. Ela não conseguia avançar e não se tratava, infelizmente, de voltar para trás. Como se o seu passado, o seu presente e as suas antecipações se desfizessem subitamente contra uma parede tão imprevista quanto incontornável.”
Oito anos antes, ficara a saber que sofria de uma forma muito grave de linfoma. Mesmo evitando ceder a qualquer determinismo “psicológico”, podemos reconhecer que a doença marcou o labor criativo dos anos finais de Françoise Hardy, ecoando em particular no confessionalismo pudico do último álbum, Personne d’autre (2018). O seu alinhamento terminava com a canção “Un mal qui fait du bien” (à letra: “um mal que faz bem”): “Nada de anódino / Um mal que faz bem / Paro aí, retenho-me / Nem uma derradeira palavra, nem uma palavra de fim.”
Há cerca de seis meses, num misto de contundência e contenção, escreveu uma carta aberta ao Presidente Emmanuel Macron (publicada no jornal La Tribune, 17 dez. 2023), apelando à criação de condições para a legalização da eutanásia e do chamado suicídio assistido: “Contamos com a sua empatia e esperamos que possa permitir aos franceses muito doentes e sem esperança pôr fim ao seu sofrimento quando sabem que já não há qualquer alívio possível.”
Evitemos os clichés. Ao contrário de uma perversão ideológica hoje em dia dominante, da televisão à publicidade (incluindo, claro, a publicidade televisiva), não avançamos no conhecimento do mundo reduzindo tudo e todos a eventos “militantes”. Simplificando, celebremos apenas (e não é pouco) a precisão cristalina das palavras de Françoise Hardy, superando as fronteiras convencionais entre a intervenção social e a digressão poética.
A indiferença que acompanhou a notícia da morte de Françoise Hardy (com excepções, claro) terá passado por alguma resistência cega a essa ambivalência primordial das palavras — ditas ou escritas —, menosprezada pela velocidade postiça do espaço mediático em que, todos os dias, a nossa sensibilidade se atordoa. Sou mesmo levado a supor que, pelo menos neste caso, nada disso terá sido alheio ao facto de estarmos perante uma figura que não provém do espaço anglo-saxónico (não esquecendo que também cantou em língua inglesa). Pertencendo eu a uma geração que estudou o francês como língua estrangeira prioritária, o facto é tanto mais significativo quanto o que está em jogo não é a concorrência “sociológica” entre duas línguas, mas a desvalorização implícita da humanidade da expressão.

>>> Tous les Garçons et les Filles (1962) / [Scopitone].
 

Regresso ao primeiro álbum de Françoise Hardy, Tous les garçons et les filles, e à transparência romântica da canção-título. Foi em 1962. Para muito boa gente (a começar por pessoas da minha geração), este seria um despreocupado retrato dos “rapazes e raparigas” da época, encarado de modo tanto mais pitoresco quanto a expressão “rapazes e raparigas” desapareceu da linguagem corrente — agora, só há “juventude” e, na maior parte dos casos, da política à publicidade, “ser jovem” é uma condição tratada como uma espécie de “jogging” burocrático para se entrar na idade adulta.
Em boa verdade, estamos perante uma canção enraizada numa desencantada solidão. Esquematizando, a cantora observa os apaixonados que se passeiam “mão na mão”, vivendo “sem medo do amanhã”, enquanto ela segue “sozinha pelas ruas”. Porquê? Porque, diz ela, “ninguém me ama”. Eis uma forma singela de cruzar profundidade e ligeireza. Acontece que tal singeleza se tornou ilegível para qualquer mente alimentada pela noção corrente segundo a qual a “juventude” se define por uma de duas vias: ou o colectivismo militante de um “rebanho” político sem fissuras, ou o “individualismo” boçal promovido pelos formatos da Reality TV.
Como se aqueles que escutaram Françoise Hardy na sua adolescência mais não fossem que marionetas de uma época pitoresca em que “amor”, “sexo” ou “política” nunca existiram como temas, perguntas ou fantasmas da sua existência… Que fazer perante este apagamento do passado? Arrisco pensar em francês para lidar com a tristeza de tudo isto. Pourquoi pas?

>>> Obituário em Le Figaro.