Cinco Anos Depois (1961): Marlon Brando, actor e realizador |
No dia 3 de abril, no Diário de Notícias, dois textos assinalaram a passagem do centenário do nascimento de Marlon Brando: 'Um homem chamado desejo', de Inês N. Lourenço, e este, de minha autoria, tendo como ponto de partida a sua autobiografia, publicada em 1994.
A autobiografia de Marlon Brando, escrita com a colaboração do jornalista e romancista Robert Lindsey, surgiu em 1994 (ed. Random House), com um título “roubado” a uma peça para voz e piano composta pelo checo Antonin Dvorak em 1880: Songs My Mother Taught Me, à letra, “Canções que a minha mãe me ensinou” [Ana Netrebko].
O facto de Brando ter decidido escrever sob o signo da mãe e dos seus ensinamentos constitui, por certo, uma dimensão essencial do livro e dos afectos que por ele perpassam. Em todo o caso, importa não esquecer que tudo isso se materializa em “canções”. Umas tristes, outras alegres, algumas deixando a sensação de uma pudica incompletude. Não são narrativas orientadas por uma qualquer moral determinista, antes revisitações de um passado tão singular quanto multifacetado que se exprime através do “canto” — entenda-se: obedecendo a uma musicalidade organizada para expor uma intimidade eivada de um realismo simples, próximo da candura infantil, alheio a qualquer facilidade espectacular.
O cruzamento de referências objectivas e múltiplas ambivalências surge expresso logo nas linhas de abertura: “Ao recuar, inseguro, nos anos da minha vida, tentando lembrar-me do que aconteceu, descubro que nada é claro. Creio que a primeira memória que tenho é de quando era demasiado criança para me recordar que idade tinha.”
Tais incertezas não são sustentadas por qualquer forma de lirismo redentor. Com palavras secas, estranhamente serenas, Brando considera mesmo que viveu num cenário errado: “Muitas vezes pensei que teria sido muito melhor se tivesse crescido num orfanato.” Porquê? Em boa verdade, confessa que não sabe explicar, mas identifica dois dados muito concretos do seu espaço familiar: “(…) creio que a minha mãe foi ficando cada vez mais desiludida e zangada com o comportamento de mulherengo do meu pai, enquanto ele ia ficando mas infeliz com o facto de ela beber.”
Daí a explorar uma imagem de auto-vitimação, à maneira das “vedetas” da televisão populista, seria um passo que, obviamente, é totalmente alheio às confissões de Brando. Com algumas surpresas, convém dizer, até mesmo nas referências ao Actors Studio, a “casa” da arte de representar de que ele foi (e é) um símbolo incontornável. Assim, se o víamos como um dos discípulos mais geniais de Lee Strasberg, figura central na história do Studio, somos levados a relativizar o retrato: “Depois de eu ter algum sucesso, Lee Strasberg quis fazer crer que isso se ficou a dever ao facto de ele me ter ensinado a representar. Ele nunca me ensinou nada. (…) Havia quem o reverenciasse, mas nunca percebi porquê. Para mim era uma pessoa sem gosto e sem talento de que nunca gostei muito.” Quem foram, então, os verdadeiros mestres de Brando? Stella Adler e Elia Kazan.
Implacável com os defeitos que atribui a outros, Brando não o é menos consigo próprio, sobretudo quando se trata de recordar os tempos em que começou a experimentar o gosto do sucesso — em particular o período que passou em Paris depois do impacto de Um Eléctrico Chamado Desejo em palco (1947-49): “(…) sinto-me chocado por me ver coberto pela mesma sujeira que apontava nas pessoas que critiquei; a fama alimenta-se do esterco (“manure”) do sucesso e eu permiti que isso acontecesse.” Daí também o misto de desencanto e ironia com que Brando evoca os tempos de glória em que ele e James Dean, mais do que “embaixadores” do Actors Studio, foram transformados em cruzados de um novo conceito de juventude. Na legenda da foto de uma festa em que ambos estão presentes, escreve Brando: “Éramos ambos rapazes do campo, fomos promovidos como rebeldes. Dean imitava a minha maneira de representar e também aquilo que ele acreditava que era o meu estilo de vida.”
Dir-se-ia que a relutância em encarnar o seu próprio mito o levou a realizar Cinco Anos Depois (1961), “western” atípico que tem qualquer coisa de espelho de uma solidão sem remorso. Será também essa solidão que o leva a encarar a velhice como um tempo de culto do paradoxal minimalismo das memórias — recorde-se que Songs My Mother Taught Me foi lançado cerca de dez anos antes da morte de Brando. Assim, por exemplo, para “explicar” uma célebre fotografia em que o vemos ao lado de Marilyn, escreve: “Cruzei-me com Marilyn Monroe numa festa. Enquanto os outros bebiam e dançavam, via-a sentada num canto, quase sem se dar por ela, a tocar piano. Tivemos uma relação. Falámos pela última vez dois ou três dias antes de ela morrer.”