Nathalie Baye no filme Salve-se Quem Puder (1980): "Eu não sou uma máquina" |
Com as palavras de José Gil ou Jean-Luc Godard podemos, talvez, imaginar outras formas de fazer política — esxte texto foi publicado no Diário de Notícias (14 janeiro).
Meio século depois do ano de 1974, qual é a nossa cultura política? A pergunta envolve um pressuposto que muitos protagonistas da cena política não reconhecem — talvez nem sequer o conheçam. A saber: a cultura não é uma “secção” da sociedade que, para o melhor ou para o pior, está entregue à gestão dos políticos. Porquê? Porque esses políticos existem também como entidades eminentemente culturais: valorizar (ou resistir a) determinadas formas de relação humana, estabelecer laços (ou rupturas) de comunicação constitui, afinal, a mais elementar definição de cultura e das suas dinâmicas.
Não se trata, entenda-se, de menosprezar a importância das decisões que os políticos tomam, ou podem tomar, no sentido de enriquecer as nossas relações com os livros e os filmes, os concertos em sala ou a música que escutamos em casa, o teatro que vemos ou não podemos ver… Seja como for, tal importância parece decorrer de uma ingénua (ou apenas cínica) noção voluntarista segundo a qual “a” cultura se esgota numa qualquer rede de “equipamentos” mais ou menos frondosos.
Veja-se (e ouça-se) como a maior parte dos políticos abdicou da especificidade da sua função, dirimindo as suas diferenças apenas através da troca imaterial de mensagens televisivas. As suas diferenças de pensamento, se é que existem, unificam-se num imperativo fulanizado. Como? Invectivando o outro a aparecer como imagem: “Ele deve ir à televisão explicar-se”, eis uma frase corrente que se tornou mesmo o desafio mais radical que cada político arrisca (ou sabe) dirigir a qualquer outro. Esse outro, tal como o próprio, parece existir apenas através dessa presença imponderável, mil vezes repetida, mil vezes banalizada, na forma e na formatação do pequeno ecrã.
Que fazer quando a política agoniza todos os dias na tele-política? Será que as escolhas eleitorais se esgotam, agora, democraticamente, na avaliação da performance mediática de cada político? A questão é tanto mais pertinente quanto não são poucos os exemplos dos que surgiram com responsabilidades políticas depois de assumirem diversas formas de comentário televisivo.
Infelizmente, há jornalistas que se comportam como se ignorassem as singularidades deste sistema de comunicação — e não há nada de mais cultural do que o modo como organizamos a nossa comunicação, ou aquilo a que atribuímos essa designação. Recusam-se, assim, por princípio (eventualmente de modo inconsciente), a reflectir sobre o próprio aparato em que laboram.
Nos triliões de “debates” que ocupam o nosso quotidiano, há recorrentes exemplos deste estado das coisas. Basta alguém dizer que é preciso não esquecer que a televisão (e, certamente, os jornais, as rádios e todos os órgãos de comunicação) é parte integrante da nossa vida cultural para haver um moderador vigilante que, com o automatismo de um robot, recorda que “não é isso que estamos a discutir”… O que, entenda-se, não impede que um sobressalto registado em 5 segundos de imagens suscite infindáveis horas de “análise”: antes mesmo de o “acontecimento” esgotar as suas peripécias, já estamos “em análise”. A mensagem não podia ser mais explícita: não parem para pensar.
Não me atrevo a resumir a exuberante riqueza e complexidade do livro de José Gil recentemente publicado, Morte e Democracia (ed. Relógio D’Água, outubro de 2023). Correndo o risco de uma abusiva simplificação, direi que nele encontramos a afirmação radical da vida humana como “coisa” que só pode ser pensada (e, enfim, vivida) através do reconhecimento da morte e do seu indizível.
Sem que isso, entenda-se, nos afaste das componentes muito concretas do nosso viver e, não poucas vezes, do mal viver que nele se instila. Cito algumas linhas do capítulo intitulado “Justiça, imortalidade e finitude”: “Para cada época histórica, em cada sociedade, existe um grau de conivência inconsciente das classes inferiores para com as superiores na aceitação de normas e regras que constrangem e oprimem as primeiras em benefício das segundas, conivência que cimenta decisivamente a coesão e a vida pacífica da comunidade.”
Qual o preço dessa coesão? Alargo um pouco mais a citação: “Trata-se, mais uma vez, da “servidão voluntária” de La Boétie, para a qual contribuem o “ópio do povo” de Marx e, actualmente, tantos outros narcóticos sofisticados (média, redes sociais, publicidade, etc.). Toda a sociedade admite um grau de injustiça, como se se tratasse de uma situação justa e “normal”.”
Num filme de Jean-Luc Godard lançado em 1980 (entre nós chamado Salve-se Quem Puder), a personagem interpretada por Nathalie Baye lia uma frase sobre a tristeza dessa normalidade — “Há algo no corpo e na cabeça que resiste ao nada” —, enaltecendo o valor vital de “um sopro de irregularidade” ou de “um movimento em falso”. E fazia um pequeno inventário de detalhes microscópicos do nosso viver: “Tudo aquilo que, dentro do insignificante quadrado de resistência contra a eternidade vazia que é o posto de trabalho, faz com que ainda haja acontecimentos, mesmo minúsculos.”
Descrevia depois alguns sinais de tudo aquilo que deixámos de contemplar: “Esta falta de jeito, esta deslocação supérflua, esta súbita aceleração, esta mão que persiste duas vezes, esta careta, esta coisa que se desliga, é a vida que volta a agarrar-se. Tudo aquilo que em cada homem desta cadeia de acontecimentos grita em silêncio: eu não sou uma máquina.” Vale a pena lembrar que a personagem de Nathalie Baye se chama Denise Rimbaud — eis um nome a merecer análise.