O cavalo em movimento de Muybridge: como se fosse um filme... |
Disponível na plataforma Filmin, Revelando Muybridge é um exercício exemplar de revisitação e redescoberta da herança do fotógrafo Eadweard Muybridge (1830-1904): com ele, os avanços técnicos foram também revoluções do olhar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 janeiro).
São muitos os filmes disponíveis nas plataformas de streaming que relançam a tradição televisiva dos documentários sobre “artes & letras”, dando-nos a conhecer o trabalho, as proezas, por vezes as revoluções estéticas ou narrativas protagonizadas pelos mais diversos criadores. A maioria fica-se pela convenção informativa, certamente interessante em termos enciclopédicos, mas pouco inventiva no plano cinematográfico. Revelando Muybridge (título original: Exposing Muybridge), disponível na Filmin, é uma bela excepção.
A história e, mais do que isso, a herança técnica e formal do inglês Eadweard Muybridge (1830-1904) apresenta como capítulo central as célebres fotografias de um cavalo em movimento realizadas em 1878, nos EUA, em Palo Alto, por encomenda de Leland Stanford, ex-governador da Califórnia e apaixonado criador de cavalos. Para Stanford, tratava-se de esclarecer se, durante a corrida, em algum momento, um cavalo teria as quatro patas no ar… Para Muybridge, a experiência representou um desafio às próprias potencialidades do aparelho fotográfico e, em particular, à sua capacidade de dar conta do movimento.
Distinguido em 2022 nos prémios da Writers Guild of America (melhor argumento para um documentário), Revelando Muybridge narra, assim, um capítulo fascinante da história dos olhares humanos. Através de uma pedagógica montagem de materiais de arquivo e vários depoimentos, o realizador e argumentista Marc Schaffer mostra como Muybridge soube aplicar a fotografia para lá das tarefas rotineiras de “confirmação” das aparências do mundo à nossa volta. Ou como diz a certa altura Tom Gunning, professor da Universidade de Chicago: Muybridge foi protagonista e mentor de “uma verdadeira revolução”. A saber: “A máquina fotográfica tornava-se mais poderosa do que o olho humano.”
A viagem que o documentário propõe é tanto mais envolvente quanto os entrevistados pertencem a domínios muito variados, incluindo ainda, entre outros, Marta Braun, professora e curadora especialista em Muybridge, o fotógrafo Mark Klett, a escritora Rebecca Gowers e até o actor Gary Oldman, neste caso enquanto coleccionador de arte.
Ironicamente, nos primeiros anos do labor de Muybridge, as suas imagens pareciam corresponder a uma lógica de “fotógrafo da natureza”, de algum modo antecipando as obras de mestres americanos como Edward Weston (1886-1958) ou Ansel Adams (1902-1984). Será, em parte, verdade, mas Marc Schaffer consegue a proeza de expor as relações da própria composição da imagens com elementos muito específicos da vida familiar e da personalidade de Muybridge. Sem esquecer que o seu empenhamento no estudo do movimento — incluindo a combinação de fotografias para criar a ilusão desse mesmo movimento — o define também como pioneiro do olhar cinematográfico. Daí o singular didactismo de Revelando Muybridge: nesta época de aceleração das imagens e comportamentos desatentos, sabe bem redescobrir os sinais de quem nunca desistiu do rigor, e também da emoção, que um olhar pode conter e, de alguma maneira, partilhar.