João Mota, em O Mal Amado: Portugal, 1973 |
Através da retrospectiva de Fernando Matos Silva, na Cinemateca, reencontramos o passado como “coisa” do nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 janeiro).
A sessão de abertura do ciclo dedicado a Fernando Matos Silva, na Cinemateca [4 jan.], envolveu o reencontro feliz com muitas memórias — e algumas pessoas intimamente ligadas às raízes dessas memórias. Desde logo, porque a passagem da sua primeira-longa metragem, O Mal Amado — último filme português proibido pela censura, primeiro a ser estreado depois do 25 de abril de 1974 —, permitiu redescobrir um título que entrou para a história como uma “fronteira” simbólica no interior da evolução de todo o cinema português. Depois, porque o trabalho de Fernando Matos Silva reflecte um desejo de registar o mundo à nossa volta que integra uma vontade, certamente política, mas também afectiva, de discutir e transfigurar os pressupostos de organização desse mesmo mundo. A decorrer até ao final de janeiro, o ciclo surge, aliás, com um título sugestivo: “O cinema a fazer a realidade.”
O Mal Amado constrói-se a partir de um cliché narrativo que, perversamente, funciona também como provocação ideológica e parábola moral. Toda a acção é uma câmara de eco de uma família de estereótipos: o pai autoritário (Fernando Gusmão), a mãe submissa (Helena Félix), o filho rebelde (João Mota) que, graças ao “sr. doutor” que o pai conhece, consegue um emprego em que acaba por viver um romance trágico com a sua chefe (Maria do Céu Guerra)…
Repare-se: não está em causa a verosimilhança social ou a pertinência crítica de tais estereótipos na sociedade portuguesa do começo da década de 1970. Aliás, a sua “verdade” existencial encontrava até uma câmara de eco no humor festivamente ambíguo e contundente do teatro de revista (então na sua época áurea), muitas vezes explorando os contrastes de personagens com idênticos vínculos sociais.
E não deixa de ser curioso observar a presença de um mesmo pano de fundo familiar, obviamente sujeito a tratamentos narrativos muito diversos, em títulos contemporâneos do cinema português, também gerados antes do 25 de abril — penso, em particular, nos exemplos de Sofia e a Educação Sexual (1974), de Eduardo Geada, e Brandos Costumes (1975), de Alberto Seixas Santos. Passado meio século, a revisão de O Mal Amado é tanto mais motivadora quanto nos permite reconhecer os prolongamentos e rupturas que o tempo inscreveu nos nossos olhares (recordo que o filme existe numa edição em DVD, com chancela da Academia Portuguesa de Cinema, a partir da cópia restaurada pela Cinemateca).
Com argumento de Álvaro Guerra, João Matos Silva e Fernando Matos Silva, a sua dramaturgia propõe elaborados cruzamentos ficcionais, incluindo uma representação de O Auto da Alma, de Gil Vicente, em que está envolvida a personagem de Maria do Céu Guerra. Ao mesmo tempo, nele sentimos — através das imagens e dos sons, com assinatura, respectivamente, de Manuel Costa e Silva e Alexandre Gonçalves — um impulso documental que pontua toda a evolução do realizador: Acto dos Feitos da Guiné (1980) ou Carlos Paredes: Crónica de um Guitarrista Amador (1999), são exemplos esclarecedores (a exibir, respectivamente, nos dias 18 e 26).
Nesta perspectiva, diria que, quanto mais o tempo passa, mais sugestivas, por vezes comoventes, são as ruas de Campo de Ourique, tal como as vemos em O Mal Amado. Nada a ver, entenda-se, com o paternalismo pitoresco que, não poucas vezes, tem contaminado o cinema e a televisão do nosso país — aliás, para lá dos seus altos e baixos, o trabalho de Fernando Matos Silva sempre foi alheio à demagogia que esse paternalismo promove. Acontece que quando descobrimos João Mota e Maria do Céu Guerra nesses exteriores, não estamos perante meras cenas “de passagem” para novos interiores — no limite, as ruas são personagens vivas que enquadram os precários amantes, sugerindo a existência de um outro mundo, político e sensorial, para o qual seria preciso criar novas imagens, outras histórias.
Dispensemos, por isso, a retórica cultural (?) com que o passado do cinema português é tradicionalmente reduzido a uma colecção de curiosidades que ficaram congeladas no tempo. O Mal Amado, a par dos outros exemplos que podemos encontrar na filmografia do seu autor, existe e persiste como um objecto que convoca o espectador para esse ziguezague passado/presente que é “coisa” visceral do cinema. E também da televisão, como aconteceu no programa da RTP, Cinemagazine, que Fernando Matos Silva realizou entre 1989 e 1996 (alguns exemplos serão mostrados na sessão do dia 15). Afinal de contas, é esse o legado de uma geração que nos ensinou que, seja qual for o tamanho do ecrã, a nossa identidade está sempre em jogo.