Paolo Giordano [© Pierluca Esposito] |
Paolo Giordano, escritor italiano, projecta-nos num relato em que as violentas convulsões do mundo contemporâneo surgem através de um narrador à procura de si próprio: Tasmânia é um romance tão invulgar quanto envolvente sobre os nossos tempos apocalípticos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 dezembro).
Nascido em Turim, em 1982, o escritor italiano Paolo Giordano estreou-se com um título sugestivo: A Solidão dos Números Primos. O romance valeu-lhe o prestigiado Prémio Strega, referente a 2008, sendo de imediato adaptado ao cinema, com o mesmo título, numa realização de Saverio Constanzo — a principal intérprete, Alba Rohrwacher, foi distinguida com o prémio de melhor actriz na edição de 2010 do Festival de Veneza.
Agora que chega ao mercado português o seu mais recente romance, o belíssimo Tasmânia (com tradução de Vasco Gato e chancela da Dom Quixote), talvez possamos dizer que a moral fundadora da sua obra não se alterou: como os números primos, apenas divisíveis por um e por si mesmos (2, 3, 5, 7, 11, etc.), cada uma das suas personagens vive nessa solidão de não se poder dividir para os outros, ou através dos outros.
Daí a pergunta latente em todas as relações: como é que “eu” me posso entregar a “ele/ela” se aquilo que cada um pode dar ao outro está fechado numa fortaleza inexpugnável? No seu limite mais perturbante, essa é uma tragédia ampliada pelos efeitos da pandemia que Paolo Giordano analisou num breve ensaio de 2020 intitulado Frente ao Contágio (ed. Relógio D’Água, tradução de Miguel Serras Pereira). Aí escreveu: “O vai-vém simultâneo de sete mil milhões e meio de pessoas, eis a rede de transportes dos coronavírus. Rápida, confortável, capilar — exatamente a nosso gosto. Frente ao contágio, a nossa eficácia é também a nossa condenação.”
Tasmânia começa com uma citação de uma canção dos Bright Eyes, do álbum Cassadaga (2007). É o verso final do tema Clairaudients (Kill or Be Killed) em que se pergunta qualquer coisa como: “Estás de acordo se disser que os tempos mudaram?” O que talvez justifique a pergunta: que tempos são estes? Pois bem, são os nossos tempos em que, conscientes ou não da nossa solidão, sentimos a hipótese da destruição total do planeta como algo que já não pertence ao domínio da ficção científica. Assim o diz o título da primeira parte do livro: “Em caso de apocalipse”.
O narrador trabalha sobre o apocalipse. Literalmente, como nos avisa logo a abrir: “Em novembro de 2015, dei por mim em Paris para assistir à conferência das Nações Unidas sobre a emergência climática.” Porquê e para quê? Em nome da nobre intenção de conhecer, e dar a conhecer, os perigos que ameaçam a nossa existência.
Terá sido um ritual defensivo, já que a “inclinação para as tragédias que tomamos como nobre” talvez decorra da “necessidade de encontrar a cada passo complicadíssimo da nossa vida algo ainda mais complicado, mais urgente e ameaçador no qual diluir o sofrimento pessoal.” Como pano de fundo, havia mesmo uma crise conjugal pontuada pela austera biologia do sexo: “Eu e a minha mulher tentáramos por diversas vezes ter um filho, insistíramos ao longo de cerca de três anos, submetendo-nos a procedimentos médicos cada vez mais humilhantes.” Uma longa história? Sim, certamente, mas todas estas palavras estão na primeira página do romance.
Daí o programa ético de Paolo Giordano. Chamemos-lhe contaminação de todos os estados de alma ou, face aos crimes contemporâneos, o reconhecimento de que a história colectiva não se faz da mera acumulação de histórias individuais. Isso de cada um de nós se sentir um indivíduo (com uma história e uma identidade que o distingue do parceiro do lado) não passa de uma ficção que o terror vai minando: “Havia uma contiguidade inédita entre as nossas vidas e uma nova forma de mal absoluto — a expressão é batida, mas não saberia defini-lo de outro modo —, um mal que brotava aqui e ali no continente como uma flor apodrecida.”
Tal como Paul Auster, por exemplo, Paolo Giordano cultiva uma arte da escrita em que as falas das personagens não se autonomizam. Surgem no interior de um fluxo em que as palavras subjectivas e as descrições objectivas se diluem umas nas outras, avisando-nos para a espessura difícil dessa “coisa” ingrata a que, à falta de melhor, chamamos realidade.
A certa altura, há mesmo uma conversa em que o narrador e um amigo escalpelizam as tendências dos diferentes jornais em que colaboram, a ponto de até mesmo a urgência de escrever uma crónica sobre a degradação do ambiente parecer irrisória face ao estado das coisas. Ou nas palavras do amigo: “Além de que, digamo-lo claramente, já não existem verdadeiras diferenças políticas. Só existe o ser-se a favor ou contra a verdade.”
Paradoxalmente, será redutor ler Tasmânia como um cântico encerrado no seu pessimismo. Desde logo, porque o narrador não é um “mensageiro” de um sistema fechado de ideias. O que o distingue é o facto de ser portador de um desejo de compreender o mundo (mesmo quando não se compreende a si próprio) que resiste à moda mediática de nos sujeitarmos aos ditames dos “especialistas” de todas as tragédias que nos assombram. Em momento de diálogo conjugal, confessa: “Estava a abandonar a física para me dedicar exactamente a quê? Em que âmbito, como escritor, haveria de ser um especialista dali em diante? Nunca me dirigira estas perguntas, mas se o tivesse feito eu ter-lhe-ia respondido que, depois de todos os anos de estudo, a incompetência era justamente aquilo que eu procurava: tornar-me finalmente um especialista em nada.”
Este nada é o nada da escrita: para Paolo Giordano, mudar o mundo é ousar a escrita como algo que se separa do mundo, ao mesmo tempo que nos devolve a complexidade desse mesmo mundo. A palavra “Tasmânia” surge, por isso, como uma geografia, uma hipótese de utopia e um enigma que cada leitor deve resolver.