domingo, dezembro 03, 2023

Paul Lynch, Booker Prize
— elogio da realidade virtual

Paul Lynch

Com o seu livro Prophet Song, o irlandês Paul Lynch ganhou o prestigiado Booker Prize: a saga de uma mãe confrontada com a repressão de um estado totalitário segue a lógica de uma ficção futurista, embora ecoando de forma perturbante no nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 novembro).

Nascido na cidade de Limerick, no sudoeste da Irlanda, a 9 de maio de 1977, Paul Lynch, surgiu esta segunda-feira nas manchetes de todo o mundo como vencedor do Booker Prize, com o livro Prophet Song (Oneworld Publications, 2023). Em qualquer caso, não era um desconhecido: os seus anteriores quatro romances valeram-lhe um reconhecimento que se traduziu em várias distinções de prestígio, incluindo o prémio de melhor romance irlandês de 2018, para Grace, atribuído pelo Kerry Group.
A vitória de Prophet Song parece corresponder a um reconhecimento da ficção, não como “reprodução” do que acontece (aconteceu, ou pode acontecer) no mundo à nossa volta, antes como celebração do poder ancestral da escrita. A saber: vogamos num mundo alternativo que, explorando uma calculada ambiguidade, nos envolve através de uma perturbante actualidade simbólica. Ainda que num registo bem diferente, esse é também o desafio de outro dos candidatos ao Booker — Study for Obedience, de Sarah Bernstein (Granta Publications, 2023) —, uma prodigiosa viagem confessional de uma mulher que luta, afinal, pela definição da sua identidade.
Em Prophet Song, estamos perante o retrato de uma Irlanda futurista, ma non troppo, em que Eilish Stack, mãe de quatro filhos, se vê forçada a lidar com as muitas formas de vigilância, manipulação e agressão de um sistema totalitário. Tudo começa quando dois oficiais de uma “polícia secreta” recentemente constituída batem à porta da casa da família Stack com a missão de interrogar o marido sobre as suas actividades sindicais… A partir daí, a tentativa de manter as rotinas do quotidiano vai transformar-se numa cândida ilusão, gerando uma saga de cruel sobrevivência. Como escreve Lynch, para Eilish o tempo parece “duplicar-se”, numa vertigem em que o medo se enlaça com a resistência, “como se a sua vida se desenrolasse duas vezes ao longo de caminhos paralelos.”
Será aquilo que nos habituámos a chamar uma ficção distópica, sem dúvida. Seja como for, Prophet Song nada tem que ver com a moda “juvenil” das aventuras de super-heróis e afins, até porque a sensação surreal de todo um sistema de vida em decomposição nos chega através de uma prosa aplicada e, mais do que isso, obcecada na inventariação de infinitos detalhes realistas. A extensão invulgar de muitos parágrafos de Lynch, longe de qualquer ostentação formalista, serve mesmo para intensificar esse desejo de manter a realidade no interior de parâmetros descritivos e emocionais que evitem a ameaça de desagregação e morte.
De acordo com o próprio Lynch, Prophet Song é “uma tentativa de empatia radical”. Numa breve entrevista em video, disponível no site oficial do Booker, é-lhe perguntado como é que a ficção pode provocar esse tipo de empatia, afinal “opondo-se a relatos factuais das crises sociais”. A sua resposta é exemplar: “Acho sempre graça quando ouço os tecnólogos a falar da procura da realidade virtual, já que acontece que a realidade virtual foi inventada há centenas de anos — chama-se romance.”