Vanessa Kirby e Joaquin Phoenix |
No novo Napoleão, com assinatura de Ridley Scott, encontramos Joaquin Phoenix e Vanessa Kirby, respectivamente como Napoleão e Josefina: eis uma biografia grandiosa e perversa que se afasta, ponto por ponto, das regras do tradicional filme histórico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 novembro).
Ridley Scott |
Na sua versão corrente, a questão tende a alimentar conflitos pueris. Porquê? Porque pressupõe a candura de algo que não existe: a nitidez incontestável e definitiva de uma “história” em que todos nos reconheceríamos. Como esquecer que fazer história (seja de Napoleão ou do 25 de abril português, passando pelo desaparecimento do habitat do urso polar…) não é a “transcrição” de um saber universal e imaculado?
Conscientemente ou não, fazer história envolve sempre a dinâmica de algum ponto de vista, a começar pela selecção e tratamento das memórias individuais e colectivas. Pensemos, por exemplo, em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, e A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson — será preciso lembrar que a universalidade da figura de Jesus Cristo não basta para mascarar as radicais diferenças de perspectiva, pensamento e encenação dos dois filmes?
As singularidades do novo Napoleão têm suscitado a renovada agitação de uma velha querela de sensibilidades e humores, opondo “franceses” e “britânicos” (com aspas, claro, porque os países são um pouco mais complicados do que qualquer forma de clubismo). Assim, várias vozes da imprensa francesa têm acusado o filme de ser “anti-francês” e “pró-britânico”, como se tudo se reduzisse a confrontos futebolísticos entre duas claques histéricas. Nos seus enérgicos 85 anos (nasceu a 30 de novembro de 1937, em South Shields), Ridley Scott há muito perdeu a paciência para aturar tais infantilismos e limitou-se a responder no mesmo tom: “Os franceses nem sequer gostam de si próprios…”
Quem é, então, este Napoleão? Descobrimo-lo como uma personagem discreta, em boa verdade anónima, observando as convulsões da Revolução Francesa e, em particular, a decapitação da rainha Maria Antonieta. Nessa altura, a sua condição de militar, mais tarde decisiva na estratégia de conquista do poder político, está longe de ser determinante na ambiência dramática dessa cena de abertura, aliás desembocando numa decapitação de gélido realismo, porventura das mais cruas que o cinema já nos mostrou.
Por um lado, Napoleão é um filme de desmesurada ambição, não apenas pela imponência e sofisticação dos meios, mas também pela acumulação de momentos emblemáticos da trajectória de Napoleão — das batalhas, como é óbvio, incluindo o confronto com as tropas do Duque de Wellington (Ruper Everett) em Waterloo, até ao exílio, passando pela coroação como imperador, cena a que Ridley Scott empresta a perturbação de um bizarro embaraço colectivo. Por outro lado, nunca o filme favorece esse determinismo condescendente, hoje em dia dominante nas séries ou mini-séries “históricas” das plataformas de “streaming”, apresentando-os antes um Napoleão atípico cuja ousadia militar contrasta com a pequenez do oportunista cuja fragilidade emocional o aproxima, sem dúvida de forma incómoda, da humanidade do espectador.
Daí também a estranha energia que se desprende das cenas de Joaquin Phoenix com essa actriz fora de série que é Vanessa Kirby, compondo uma Josefina capaz de desafiar o estereótipo histórico da “cara metade” do imperador, mas também demarcando-se de qualquer exaltação feminista em que se pretenda encaixar o seu enigmático poder. Quando ela aparece, o olhar ansioso, mas firme, e um corte de cabelo de “hippie” fora do seu tempo, definem-na como personagem intratável, resistente a qualquer rótulo redentor.
Tal como filmados por Ridley Scott, Napoleão e Josefina são os derradeiros representantes (cinematográficos, entenda-se) de um romantismo que foi derrotado pelo cinismo triunfante dos nossos tempos. Nos momentos explicitamente sexuais, há mesmo uma espécie de automatismo carnal que contrasta com as sombras trágicas que se abatem sobre os seus destinos — são fantasmas da história, ainda antes de a história os vencer.
Curiosamente, esse romance falhado, de tocante tristeza, que Napoleão e Josefina aqui protagonizam já foi implicitamente reconhecido por Ridley Scott como matéria central do filme. A estreia global que agora acontece — seguida da passagem para a Apple TV+ (em data ainda por anunciar) — é apenas uma versão deste Napoleão. Isto porque o filme surge com 157 minutos, mas o realizador já anunciou que montou um “director’s cut”, com quatro horas e meia de duração, em que a personagem de Josefina está (ainda) mais presente — mais tarde ou mais cedo, será integrado na Apple TV+.
Tudo isto reflecte também a visão de Ridley Scott como produtor. Aliás, como é habitual nos seus trabalhos, o filme da Apple Studios tem como entidade coprodutora a Scott Free, empresa que Ridley fundou, no começo da década de 1970, com o irmão Tony Scott (1944-2012). Em declarações à revista Total Film, ele faz mesmo questão em sublinhar a proeza de produção de Napoleão, uma vez que a respectiva rodagem durou apenas 62 dias, período incrivelmente curto para um projecto desta escala. Para ele, trata-se de investir numa grandiosidade de meios que obedece a uma metódica racionalização dos gastos. Assim, por exemplo, a utilização de pelo menos 11 câmaras para filmar as batalhas traduziu-se num tempo de rodagem de seis dias para sequências que, usando dispositivos tradicionais, exigiriam um mês de trabalho.
Dir-se-ia que o produtor/realizador encontrou na personagem de Napoleão o eco ambíguo de um desejo de grandiosidade que o seu cinema reafirma, demarcando-se das modas, e também da saturação de super-heróis e afins, valorizando, em particular, os recursos (visuais e sonoros) das salas IMAX. Não é uma identificação sentimental, antes um perverso jogo de espelhos consumado pela liberdade criativa que a narrativa celebra. Ainda que correndo o risco de ofender as palavras lendárias de Gustave Flaubert sobre a sua Bovary, Ridley Scott pode proclamar ao mundo: “Napoleão sou eu”.