sábado, dezembro 23, 2023

A propósito do documentário
ETA - Conversas com um Terrorista

Josu Urrutikoetxea no filme Marius Sánchez/Jordi Évole:
memórias trágicas

Produzido e difundido pela Netflix, ETA - Conversas com um Terrorista é aquilo que o título anuncia: um diálogo com um homem que foi membro da ETA. Os seus trunfos cinematográficos são o cuidado informativo e a serenidade da linguagem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 dezembro), com o título 'Histórias individuais e colectivas'.

O menos que se pode dizer de um filme como ETA - Conversas com um Terrorista (Netflix), realizado pela dupla espanhola Marius Sánchez/Jordi Évole, é que tudo aquilo com que nos confronta tem tanto de complexo como de perturbante. Traduzindo aproximadamente o título internacional, Face to Face with ETA: Conversations with a Terrorist, o título português é para ser tomado à letra: a matéria central é uma entrevista com Josu Urrutikoetxea (à beira de completar 73 anos), membro da organização separatista basca que, como é referido na legenda de abertura do filme, foi responsável pelo assassinato de 852 pessoas, causando 2661 feridos, entre 1968 e 2010, tendo anunciado a sua dissolução em 2018.
À partida, dir-se-ia que estamos perante um convencional “especial” televisivo, mesmo se, como é óbvio, as singularidades do entrevistado estão longe de ser indiferentes para o resultado. Até porque a situação de entrevista envolve uma tensão inevitável: os dois realizadores (sendo Jordi Évole o que conduz o diálogo e também o único que aparece nas imagens) não podem deixar de confrontar Urrutikoetxea com as memórias dos atentados e o seu rol de vítimas, procurando também perceber como é que ele se sente (e sentiu) face à brutalidade da violência da ETA.
Como o espectador descobrirá, Urrutikoetxea tenta manter um discurso de contrastes, com uma clara prudência defensiva. A evolução da sua própria situação no interior da ETA traduz-se num ziguezague de informações e comentários que vai do reconhecimento da lógica perversa de alguns atentados, nomeadamente na proliferação de vítimas civis, até outras situações em que, segundo ele, não compreende “o que passou pela cabeça” dos que planearam determinadas formas de violência. É significativo que ele diga ao entrevistador que não quer ser tratado pelo seu nome de combate, Josu Ternera — o título espanhol é mesmo No me Llame Ternera [Festival de San Sebastian].
Nada disto resvala para o pitoresco sensacionalista que, por vezes, contamina as narrativas televisivas da mesma família. Sublinhe-se, em particular, o modo como a pedagógica inserção das imagens de arquivo permite reconhecer as marcas da violência da ETA e também os seus efeitos em cadeia na esfera política e, claro, na sociedade espanhola. O certo é que este resumo do filme está longe de dar conta da fundamental subtileza que o faz funcionar.
É uma subtileza, não televisiva, mas cinematográfica. Assim, o frente a frente com Urrutikoetxea não é a única conversa que o filme apresenta: existe um outro diálogo, com Francisco Ruiz, que foi membro da segurança do presidente da câmara de Galdakao, morto num atentado da ETA, a 9 de fevereiro de 1976 — Ruiz estava de serviço, mas, apesar de ter sido atingido por várias balas, sobreviveu. Ora, ETA - Conversas com um Terrorista organiza-se como um confronto (talvez possamos aplicar uma clássica expressão da linguagem dos filmes: um campo/contracampo) entre as imagens dos dois homens. Em resumo: através de um sóbrio didactismo, este é um trabalho capaz de nos convocar para a infinita complexidade das histórias individuais e colectivas.