Kevin Spacey e Jeff Goldblum — Speed-the-Plow em Londres (2008), no palco do Old Vic |
Nas redes a que chamam “sociais” reina a obscenidade: um acusado é automaticamente tratado como culpado — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 setembro).
Revejo Kevin Spacey e Jeff Goldblum numa imagem tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante, a ponto de ter adquirido qualquer coisa de surreal. Para mim, começa por transportar uma memória de 2008, tecida de admiração e fascínio: a descoberta da representação, em Londres, no palco do Old Vic, de Speed-the-Plow, a peça de David Mamet, encenada por Matthew Warchus, sobre três personagens dos bastidores de Hollywood (na altura, Spacey era director artístico do Old Vic). A sua estreia acontecera em 1988, em Nova Iorque, com interpretações de Joe Mantegna, Ron Silver e Madonna.
Com esplendorosa ironia e crueldade, Kevin Spacey e Jeff Goldblum interpretavam dois produtores cinematográficos. Sagazes e oportunistas, discutem estratégias que reforçavam a implacável visão de Hollywood que, em diversos livros, ensaios e entrevistas, Mamet sempre exprimira, escalpelizando as zonas mais obscuras de uma indústria a que, para todos os efeitos, também pertence através de uma filmografia de invulgar brilhantismo — incluindo alguns títulos mais “ligeiros” que parecem existir apenas como projectos banalmente comerciais, como é o caso de Spartan - O Rapto (2004).
Ao lado das personagens de Spacey e Goldblum está uma secretária não tão estúpida como o cliché dramático que serve de motor ao seu aparecimento no interior da peça. Era interpretada pela talentosa Laura Michelle Kelly, actriz mais conhecida através do teatro musical (incluindo My Fair Lady, em 2003) que surgira, um ano antes, na versão cinematográfica de Sweeney Todd, realizada por Tim Burton. Na primeira representação londrina de Speed-the-Plow, em 1989, essa personagem fora interpretada por Rebecca Pidgeon, casada com Mamet desde 1991.
Na altura, Spacey era, por certo, um dos actores mais populares em todo o mundo, em particular através dos filmes que lhe tinham valido Oscars: Os Suspeitos do Costume (1995), de Bryan Singer, e Beleza Americana (1999), de Sam Mendes, respectivamente como intérprete secundário e principal. Nove anos mais tarde, isto é, a partir de 2017, seria alvo de várias acusações de abuso sexual, com consequências directas no seu trabalho, incluindo a decisão da Netflix de o afastar da temporada final da série House of Cards (2013-2018). Em dois julgamentos, viria a ser ilibado dessas acusações: primeiro em Nova Iorque, em 2022, depois em Londres, há pouco mais de um mês.
O surreal de tudo isto envolve a obscena desproporção entre os múltiplos julgamentos públicos a que Spacey foi sujeito na Internet (e também em alguns meios de comunicação, sobretudo de língua inglesa) e a virginal contenção com que, na maioria dos casos, foi noticiado o facto de os tribunais o terem reconhecido como inocente. São dados reveladores das nossas misérias civilizacionais, em grande parte geradas, consumadas e multiplicadas pela democracia da estupidez que comanda a lógica quotidiana das redes (ditas) sociais.
Como noutros exemplos de histeria purificadora, por vezes vergonhosamente empolada pela baixeza moral de algumas formas de jornalismo, a perversidade de tudo isto é clara no caso de Spacey. Assim, basta uma acusação pública (e publicitada) para que qualquer presunção de inocência (ou mesmo a simples avaliação da coerência ou da consistência das acusações) seja anulada. Com que consequências? O espaço mediático passa a ser dominado por discursos de difamação e ódio contra alguém inapelavelmente tratado como culpado, sem direito a qualquer tipo de recurso.
Perante o discreto peso de muitas notícias sobre a conclusão do mais recente julgamento, tudo se passa como se Kevin Spacey nunca tivesse existido, a não ser como marioneta de um conceito de justiça legitimado (entenda-se: que se auto-legitima) através do ruído “social” que consegue promover com assustadora facilidade. Por uma ironia muito amarga, a peça de Mamet é (também) um texto admirável sobre a violência moral do imaginário machista.
Convém, por isso, não reduzir a uma caricatura o facto de, agora, muitas vozes que se exprimem (?) nos canais “sociais” — ou em caixas de “opinião” de alguns jornais — encararem o encerramento legal do caso como uma impostura: afinal, proclamam esses cidadãos, quem tem dinheiro para advogados mais ou menos hábeis acaba sempre por “safar-se”… Não é uma citação; se fosse, seria ainda mais grosseiro.
Porque é que isto não é uma caricatura descartável? Porque tais reacções envolvem uma visão, não apenas anti-democrática, mas de total desumanização do espaço público: a execução da lei — com os seus valores, as suas exigências de prova, eventualmente a sua morosidade — acaba por ser considerada dispensável e, pior um pouco, irrelevante porque a única coisa que conta é o achincalhamento público do acusado (sempre tratado como culpado). Não será o fascismo enquanto sistema político, mas a impunidade da sua prática promove uma metódica fascização das mentalidades.
Com esplendorosa ironia e crueldade, Kevin Spacey e Jeff Goldblum interpretavam dois produtores cinematográficos. Sagazes e oportunistas, discutem estratégias que reforçavam a implacável visão de Hollywood que, em diversos livros, ensaios e entrevistas, Mamet sempre exprimira, escalpelizando as zonas mais obscuras de uma indústria a que, para todos os efeitos, também pertence através de uma filmografia de invulgar brilhantismo — incluindo alguns títulos mais “ligeiros” que parecem existir apenas como projectos banalmente comerciais, como é o caso de Spartan - O Rapto (2004).
Ao lado das personagens de Spacey e Goldblum está uma secretária não tão estúpida como o cliché dramático que serve de motor ao seu aparecimento no interior da peça. Era interpretada pela talentosa Laura Michelle Kelly, actriz mais conhecida através do teatro musical (incluindo My Fair Lady, em 2003) que surgira, um ano antes, na versão cinematográfica de Sweeney Todd, realizada por Tim Burton. Na primeira representação londrina de Speed-the-Plow, em 1989, essa personagem fora interpretada por Rebecca Pidgeon, casada com Mamet desde 1991.
Na altura, Spacey era, por certo, um dos actores mais populares em todo o mundo, em particular através dos filmes que lhe tinham valido Oscars: Os Suspeitos do Costume (1995), de Bryan Singer, e Beleza Americana (1999), de Sam Mendes, respectivamente como intérprete secundário e principal. Nove anos mais tarde, isto é, a partir de 2017, seria alvo de várias acusações de abuso sexual, com consequências directas no seu trabalho, incluindo a decisão da Netflix de o afastar da temporada final da série House of Cards (2013-2018). Em dois julgamentos, viria a ser ilibado dessas acusações: primeiro em Nova Iorque, em 2022, depois em Londres, há pouco mais de um mês.
O surreal de tudo isto envolve a obscena desproporção entre os múltiplos julgamentos públicos a que Spacey foi sujeito na Internet (e também em alguns meios de comunicação, sobretudo de língua inglesa) e a virginal contenção com que, na maioria dos casos, foi noticiado o facto de os tribunais o terem reconhecido como inocente. São dados reveladores das nossas misérias civilizacionais, em grande parte geradas, consumadas e multiplicadas pela democracia da estupidez que comanda a lógica quotidiana das redes (ditas) sociais.
Como noutros exemplos de histeria purificadora, por vezes vergonhosamente empolada pela baixeza moral de algumas formas de jornalismo, a perversidade de tudo isto é clara no caso de Spacey. Assim, basta uma acusação pública (e publicitada) para que qualquer presunção de inocência (ou mesmo a simples avaliação da coerência ou da consistência das acusações) seja anulada. Com que consequências? O espaço mediático passa a ser dominado por discursos de difamação e ódio contra alguém inapelavelmente tratado como culpado, sem direito a qualquer tipo de recurso.
Perante o discreto peso de muitas notícias sobre a conclusão do mais recente julgamento, tudo se passa como se Kevin Spacey nunca tivesse existido, a não ser como marioneta de um conceito de justiça legitimado (entenda-se: que se auto-legitima) através do ruído “social” que consegue promover com assustadora facilidade. Por uma ironia muito amarga, a peça de Mamet é (também) um texto admirável sobre a violência moral do imaginário machista.
Convém, por isso, não reduzir a uma caricatura o facto de, agora, muitas vozes que se exprimem (?) nos canais “sociais” — ou em caixas de “opinião” de alguns jornais — encararem o encerramento legal do caso como uma impostura: afinal, proclamam esses cidadãos, quem tem dinheiro para advogados mais ou menos hábeis acaba sempre por “safar-se”… Não é uma citação; se fosse, seria ainda mais grosseiro.
Porque é que isto não é uma caricatura descartável? Porque tais reacções envolvem uma visão, não apenas anti-democrática, mas de total desumanização do espaço público: a execução da lei — com os seus valores, as suas exigências de prova, eventualmente a sua morosidade — acaba por ser considerada dispensável e, pior um pouco, irrelevante porque a única coisa que conta é o achincalhamento público do acusado (sempre tratado como culpado). Não será o fascismo enquanto sistema político, mas a impunidade da sua prática promove uma metódica fascização das mentalidades.