Uma imagem da série Keyhole (2011-2013) |
Faleceu aos 64 anos: Erwin Olaf, um gigante da fotografia europeia, expôs muitas formas de solidão dos seres humanos, sempre com tocante serenidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 setembro).
O fotógrafo holandês Erwin Olaf morreu no dia 20 de setembro, na cidade de Groningen. Sofria de enfisema pulmonar, detectado em 1996, não tendo resistido às complicações decorrentes da transplantação de um pulmão, realizada há poucas semanas. Muito cedo, a gravidade da sua condição levara os médicos a considerar que dificilmente chegaria aos 60 anos de idade — na verdade, resistiu um pouco mais, tendo falecido com 64 anos.
Nas derradeiras imagens de Olaf num acto público, vêmo-lo com um sistema de inaladores para auxiliar a respiração. Foram obtidas no passado dia 23 de março, no Palácio Noordeinde, em Haia, na cerimónia em que o Rei Willem-Alexander o condecorou com a Medalha de Honra das Artes e Ciências da Ordem da Casa de Orange. Aliás, em 2013, Olaf concebera o design de uma moeda de um euro com a imagem do rei, tendo também assinado, em 2018, um notável portfolio de retratos oficiais da família real holandesa.
Sua Majestade Rainha Máxima (Março 2018) |
É provável que, por vezes, esta dimensão oficial do trabalho de Olaf tenha contribuído para uma menor atenção às singularidades do seu universo fotográfico, incluindo os breves complementos filmados que ia registando, como aconteceu nas séries Separation (2003) ou Shangai (2017) — tudo isso pode ser descoberto no seu site oficial. Além do mais, sendo ele um activista dos direitos LGBT — veja-se a prodigiosa série de auto-retratos, realizados entre 1985 e 2015 —, Olaf terá sido também rotulado como mais um artista “militante”, diluindo-se na “mensagem” da obra a precisão com que nela encontramos uma questão fulcral da iconografia contemporânea. A saber: qual o lugar do corpo — apetece dizer: da carnalidade do corpo — numa paisagem cada vez mais pontuada por artifícios digitais?
Entenda-se: a herança de Olaf não envolve qualquer conceito “purista” da imagem, já que ele nunca renegou as potencialidades criativas da manipulação digital. Lembremos as distorções dos rostos na série Le Dernier Cri (2006), com destaque para o retrato de uma modelo, quase sósia da Princesa Diana, em Royal Blood (2000): numa pose serena, olhando directamente para a câmara, a personagem surge salpicada de sangue devido a uma ferida, no braço esquerdo, provocada por um círculo metálico (que sugere o emblema dos automóveis Mercedes).
Royal Blood: Di, †1999 |
A maior parte das suas fotografias, sobretudo as que integram figuras humanas (e são quase todas…), resistem a qualquer ilusão naturalista, antes expondo e, num certo sentido, sublinhando a teatralidade da respectiva encenação. Algumas das suas séries integram mesmo memórias que nos remetem para referências muito específicas. Será o caso do elaborado “expressionismo” da série intitulada Berlin (2012), ou ainda de Palm Springs (2018), dir-se-ia uma celebração do espírito comunitário de cenários emblemáticos da Califórnia contaminada por uma sofisticada contradição emocional. Porquê? Porque em todas aquelas personagens há uma postura de radical solidão. A singeleza dessa solidão é também especialmente evidente nos nus de Skin Deep (2015), lembrando, se tal é possível, ou explicável, algumas pinturas do britânico, nascido em Berlim, Lucian Freud (1922-2011).
Embora correndo os riscos de algum esquematismo, talvez se possa considerar que os retratos de Olaf não são estranhos a toda uma herança multifacetada da pintura holandesa. Não porque ele pretenda “copiar” quadros dos respectivos mestres, antes porque entre os humanos retratados e os cenários em que os descobrimos parece haver um misto de tolerância e alheamento contrário a qualquer racionalização sociológica: as personagens são livres, mesmo quando os cenários definem os limites insuperáveis da sua própria condição histórica. Assim, por exemplo, as séries Grief (2007) e Waiting (2014). Como os títulos indicam, são imagens de luto e espera, respectivamente: tudo se passa como se a austera geometria dos cenários apenas pudesse acolher as vibrações indizíveis que sentimos, e pressentimos, na austeridade das poses humanas.
Expressão sublime disso mesmo será a série Keyhole (2011-2013), ou seja, à letra, “buraco de fechadura”. Em boa verdade, não há “voyeurismo”, muito menos choque ou escândalo. São crianças solitárias, quase sempre escondendo o rosto da câmara, preservando os enigmas de uma solidão, talvez triste, mas de contagiante harmonia. Para Olaf, tanto na contenção destas poses como na contundência dos nus, a fotografia existe, em última análise, como mensageira de um valor cada vez menos respeitado nas nossas sociedades viciadas em “comunicação”. É um valor que se diz através de uma palavra ancestral: pudor.
Da série Keyhole (2011-2013) |