sábado, março 25, 2023

A sociedade do VAR

Charlton Heston em Os Dez Mandamentos (1956),
celebrando o prazer do espectáculo

A ciência do video-árbitro vai a par de uma quase total ausência de pensamento sobre a cultura do futebol — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 março).

O título desta crónica podia ser: “Os erros humanos fazem falta ao futebol”. Seria polémico, mas já bastam as polémicas que todos os dias brotam da calçada. Reconheço mesmo que só valeria como brincadeira fútil, ainda que sugestiva, que nos afastaria ainda mais de qualquer reflexão interessante sobre o novo altar do futebol.
De que falo, então? Do VAR, precisamente. E das atribulações que introduziu na vida social do futebol. Eis que assistimos a um golo prodigioso, celebramos o feito… mas há um senhor de equipamento diferente que usa um apito e, de repente, atrai a nossa atenção. Porquê? O seu olhar vago, mas iluminado, significa que alguma voz transcendental está a comunicar com ele. Aliás, toca no auricular que usa para que não tenhamos dúvidas sobre a epifania que protagoniza — esperamos um minuto, dois minutos, três minutos… e o senhor do apito levanta o braço: não foi golo!
Parece-me óbvio que quem inventou o video-árbitro nunca gostou de cinema. Não vejo outra explicação… Lembrem-se, por exemplo, da cena de Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille, em que Charlton Heston, em pose monumental de Moisés, abre as águas do Mar Vermelho para oferecer um caminho ao seu povo. Se DeMille fosse fã do VAR, na cena seguinte o mesmo Moisés, mesmo sem auricular, receberia uma mensagem divina: o milagre teria que ser revertido porque ele não tinha renovado a licença de pesca em alto mar… Convenhamos que seria preciso reescrever a história e a mitologia de Hollywood.
A ironia é cruel e a sua crueldade gasta-se depressa. Ainda assim, talvez ajude a pensar para lá do seu confesso esquematismo. E, sobretudo, a reconhecer que há na sociedade portuguesa uma inércia de pensamento que resiste a qualquer reflexão sobre o futebol como domínio nuclear, emocional e intelectual, na formação e promoção de valores sociais.
Na prática, o VAR tende a ser encarado e discutido como uma via imaculada para uma verdade sancionada pelo discurso intocável da ciência. Estranha crença: afinal, observando o panorama circundante, todos os dias contaminado por acusações cruzadas de incompetência ou corrupção, somos levados a reconhecer que a santificação do discurso científico já teve dias mais felizes.
Acontece que o futebol, sobretudo o futebol do VAR, deixou de ser um fenómeno estritamente futebolístico. E não se trata, entenda-se, de discutir o empenho e a boa fé dos que abordam o futebol em nome da transparência que defendem para a prática desportiva. Afinal de contas, não foi preciso inventar o VAR para reconhecermos o valor moral e a pertinência técnica de tal discurso — no século passado, andava eu na escola primária e, mesmo sem VAR, os temas eram os mesmos.
Acontece que, porventura de modo incauto, o sistema de pensamento que o VAR sustenta — e pelo qual é sustentado — reforça uma forma de dependência e interdependência social que se tornou ideologicamente dominante: qualquer actividade humana tende a ser vista, encenada e, no limite, celebrada como humanamente descartável… a não ser que a possamos descrever, percepcionar e, sobretudo, sancionar através de alguma legitimação científica.
O tecido social passou mesmo a ser frequentemente exposto, desde logo no espaço mediático, como “algo” que existe entre duas alternativas, únicas e insuperáveis: ou a nossa vida consegue ilustrar um equilíbrio redentor, legitimado por algum discurso científico (à maneira do VAR), ou então só nos resta prepararmo-nos para algo de catastrófico.
Bem sabemos que o nosso presente (social e político, nacional e internacional) está cheio de dramas brutais e perturbantes. Mas o catastrofismo reinante não decorre de tais dramas, mesmo se muitas vezes os transfigura em histeria quotidiana. É um catastrofismo ambiental, de ideias fracas e espasmos violentos: no limite mais caricatural (cujas boas intenções serão, por certo, respeitáveis), já nem sequer existe a possibilidade de termos “chuva intensa”. Nada disso: entramos em “alerta amarelo”.
“Alerta” tornou-se mesmo uma palavra de ordem da banalidade televisiva (incluindo a versão lusitana, cunhada por D. Afonso Henriques, de “breaking news”). “Alerta” passou a ser o estado compulsivo do imaginário social — como o jovem repórter que, já há alguns anos, à porta de um estádio de futebol, comentando uma manifestação de adeptos, informava que “ainda não há violência”…
Os eventos que o VAR, sempre “alerta”, vai convocando para o seu tribunal, alimentado pela nossa candura científica, conseguem mesmo gerar o contrário do seu programa. A saber: esvaziar o gosto, o prazer e, por fim, o pensamento do próprio espectáculo. Ou, então, sou eu que não respeito as linhas virtuais traçadas no relvado e estou fora de jogo.

domingo, março 19, 2023

Eu Sou Clarice
— um grande acontecimento teatral

"Como me encontro, espelho, relaciono com o mundo que nos rodeia e qual a possibilidade de ser feliz nisso" — eis uma via de afirmação/interrogação que Rita Calçada Bastos relança a partir da obra de Clarice Lispector (1920-1977) em Eu Sou Clarice, um espectáculo contagiante. Entenda-se: capaz de nos fazer sentir o teatro como duplo e reinvenção, máscara e revelação da vida que vivemos (ou julgamos viver).
Com cenário da própria encenadora, Eu Sou Clarice centra-se numa luminosa composição de Carla Maciel. Mais do que "retratar" a escritora, a actriz celebra-a como personagem, ora transparente, ora indecifrável, de um universo habitado por uma pluralidade de personagens geradas pelo próprio acto de escrever.
Estreado no São Luiz em outubro de 2021, Eu Sou Clarice está agora no Teatro Aberto (até 2 de abril): um acontecimento singular, capaz de desafiar, de forma tão inteligente quanto delicada, as nossas certezas sobre o acto de representar a vida — ou de viver através da representação. 
 

sexta-feira, março 17, 2023

Bono e The Edge na NPR

Eis uma especialíssima edição dos "Tiny Desk Concerts" da NPR: Bono e The Edge interpretam quatro das canções dos U2, do álbum All That You Can't Leave Behind (2020), agora revistas e reinventadas para o recente Songs of Surrender. Com eles está o Coro da Duke Ellington School of the Arts, com este alinhamento:

* Beautiful Day
* In a Little While
* Stuck in a Moment You Can't Get Out Of
* Walk On

domingo, março 12, 2023

Bob Dylan, os livros e as canções
— SOUND + VISION / FNAC [hoje, 17h00]

Bob Dylan volta a ser referência principal do nosso Magazine — a propósito do lançamento do seu livro sobre "a filosofia das canções modernas", propomos uma viagem através da escrita, da música e das imagens do autor de Like a Rolling Stone.

* FNAC Chiado: hoje, dia 12, 17h00.