sexta-feira, fevereiro 24, 2023

Imagens e memórias da Ucrânia

Nas ruínas de Mariupol, ou a tragédia interior do tempo

Consagrado como Melhor Documentário do Cinema Europeu de 2022, Mariupolis 2 é um poderoso testemunho sobre a resistência do povo ucraniano à agressão russa. Ou o cinema a registar os sinais de um tempo trágico — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'A tragédia de Mariupol' (23 fevereiro).

Mantas Kvedaravicius
Não é possível compreender um filme apenas através da história da sua gestação, mas há casos em que essa história se revela essencial para conhecer as raízes, e também os valores, do respectivo projecto. Assim acontece com Mariupolis 2, do cineasta lituano Mantas Kvedaravicius (1976-2022): revelado em maio do ano passado no Festival de Cannes, venceu o Prémio de Melhor Documentário do Cinema Europeu, sendo esta semana lançado nas salas portuguesas.
O “2” do título remete para um primeiro Mariupolis, rodado em 2014-15, no qual Kvedaravicius registou o dia a dia da população de Mariupol, na região ucraniana do Donbass, então visada pelos ataques dos separatistas apoiados pela Federação Russa. Mariupolis 2 resultou do regresso do realizador à cidade, agora bombardeada pelas tropas de Vladimir Putin, promovendo a metódica destruição de muitas zonas de habitação.
É um filme póstumo, já que Kvedaravicius — cineasta, antropólogo e professor da Universidade de Vilnius — foi morto por soldados russos no dia 2 de abril de 2022, quando tentava sair de Mariupol. A sua companheira, Hanna Bilobrova, assumiu a herança do seu trabalho, primeiro conseguindo preservar o material das filmagens, depois organizando-o com a colaboração da montadora Dounia Sichov.
O menos que se pode dizer de Mariupolis 2 — a meu ver, desde já, um dos acontecimentos fulcrais deste ano cinematográfico — é que nos compele a repensar a presença (aliás, deveremos dizer a omnipresença) da guerra da Ucrânia no nosso quotidiano audiovisual e, mais concretamente, nas reportagens televisivas. Desde logo, porque aqui não encontramos a figura do “narrador” em frente da câmara — observador supostamente omnisciente, microfone na mão, braço a apontar para o horizonte — que constitui a unidade de linguagem mais utilizada pelas televisões de todo o mundo.
Tal demarcação não significa que o filme (ou este texto) pretenda “culpabilizar” os modelos dominantes do trabalho televisivo — importa não esquecer que as respectivas imagens têm sido também fundamentais para conhecermos a brutalidade da agressão russa contra o povo ucraniano. Acontece que as matrizes dominantes da informação audiovisual tendem a privilegiar a acumulação de fragmentos breves, por vezes descontextualizados, capazes de gerar alguma emoção imediatista ou, pior um pouco, um simbolismo simplista.
Que falta a tais matrizes? A tragédia interior do tempo — o tempo vivido, o tempo de coexistência com os sinais da morte. Aliás, devemos completar a palavra tempo com uma outra que, por assim dizer, lhe serve de espelho existencial. A saber: duração. Que é a duração? É essa intimidade do tempo em que tudo parece tornar-se inapelavelmente realista e insustentável — da observação do detrito de uma bomba que ainda queima as mãos até à descoberta de dois cadáveres “esquecidos” no meio dos detritos, passando pela tentativa de atrair alguns pombos à deriva… Mariupolis 2 testemunha a obscenidade da agressão e, por isso mesmo, a tenacidade da resistência.