Pierre Léon e Rita Durão: um filme que é um jogo de espelhos |
O cineasta francês Eric Rohmer escreveu uma única peça de teatro: O Trio em Mi Bemol. Rita Azevedo Gomes transforma-a numa pequena maravilha cinematográfica, percorrendo as memórias partilhadas de um homem e uma mulher — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 dezembro).
Como lidar com um filme tão cristalino e, ao mesmo tempo, tão distante dos lugares-comuns que assombram o cinema e os seus mercados? O Trio em Mi Bemol, de Rita Azevedo Gomes, desafia-nos para o reencontro com um nobre conceito de cinema: não se trata de “reproduzir” o mundo, antes de o envolver na magia primitiva que as imagens e os sons podem criar, de algum modo ampliando o próprio mundo [Berlinale].
Logo de entrada, contemplamos o rigor, de uma só vez geométrico e sensual, das imagens assinadas por Jorge Quintela, um dos grandes directores de fotografia do actual cinema português. O que, entenda-se, não quer dizer que Rita Azevedo Gomes ceda a qualquer facilidade “decorativa” ou “ilustrativa”. Nada disso: as imagens são parte essencial de toda a dramaturgia. O certo é que a matéria primordial na organização de O Trio em Mi Bemol é a palavra. Mais concretamente: a palavra teatral.
Na origem do filme está, justamente, a adaptação de uma raridade: O Trio em Mi Bemol, a única peça de teatro escrita por Eric Rohmer (1920-2010), por ele encenada em 1987, com Jessica Forde e Pascal Greggory. Trata-se de “Uma comédia breve em 7 quadros”, centrada num homem e uma mulher que já viveram juntos: os seus (sete) reencontros são pequenos bailados afectivos em que, através da proliferação dos diálogos, e alguns silêncios, ora irónicos, ora indecifráveis, as memórias comuns vão elaborando um puzzle de certezas e incertezas em que a música — o Trio para Clarinete, Violeta e Piano, K. 498, de Mozart — desempenha um papel fundamental.
Escusado será sublinhar que o texto de Rohmer leva-nos a evocar alguns títulos emblemáticos do seu cinema, em particular a série “Seis Contos Morais”, com destaque para A Minha Noite em Casa de Maud (1969) e O Joelho de Claire (1970). Aí encontramos inusitadas redes de relações (e pares homem/mulher) em que o insondável desejo de cada um vacila face à verdade oculta do desejo do outro.
Agora, através das magníficas interpretações de Rita Durão e Pierre Léon, descobrimos um desses “puzzles” em que as personagens são impelidas, de modo não necessariamente consciente, a reavaliar o que deram um ao outro ou, no limite, perderam através da própria relação que estabeleceram — dir-se-ia que qualquer amor coabita sempre com a sua própria perdição. O que, entenda-se também, não quer dizer que O Trio em Mi Bemol seja um drama angustiado e angustiante, já que, em última instância, circula por estes encontros e desencontros um humor tão contido quanto contagiante.
Rita Azevedo Gomes “acrescenta” ao labirinto criado por Rohmer um elemento de insólita distanciação: as duas personagens centrais são, afinal, intérpretes de um filme que está a ser rodado, sob a direção de um realizador que se exprime em espanhol (Ado Arrieta). Tudo acontece, então, como um milagroso jogo de espelhos e janelas. Literalmente, apetece dizer, já que a casa que serve de cenário ao filme — em Moledo do Minho, desenhada por Álvaro Siza Vieira, em 1964 — é, à sua maneira, um belíssimo teatro.