Stanley Kowalski, aliás, Marlon Brando em 1951: "Stella!" |
O futebol relança uma velha pergunta cultural: como é que os seres humanos se relacionam com o olhar de uma câmara? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 dezembro).
Porque gritam os adeptos de futebol? Recuemos algumas décadas, afastemo-nos das tragédias do Mundial e, por momentos, embora correndo o risco de ofender a pátria, acreditemos que a nossa felicidade poderá não estar dependente do próximo piscar de olhos de Cristiano Ronaldo — não custa tentar. Tentemos outra pergunta: porque grita Marlon Brando?
Quem conhece o filme Um Eléctrico Chamado Desejo, de Elia Kazan, adaptado da peça de Tennessee Williams, lembrar-se-á que Brando é Stanley Kowalski, casado com Stella. Vivem no “bairro francês” de Nova Orleães. Com a chegada de Blanche DuBois, a irmã de Stella que transporta as memórias e os fantasmas de uma riqueza perdida no Mississippi, o casal vai ser profundamente abalado. Esta imagem possui o poder de um lendário ícone do cinema, a ponto de simbolizar uma personagem complexa, um actor genial e, por fim, a primeira e gloriosa geração do Actors Studio. Que acontece, então? Desesperado com o efeito perverso de Blanche nas atribulações do seu território conjugal, Stanley grita: “Stella!”
Estava-se em 1951. Que é como quem diz: a imagem pertence a uma “pré-história” cinéfila, agora muitas vezes reduzida a clichés paternalistas, esmagada pelo poder de “super-heróis” e “efeitos especiais”. Apesar da sua intensidade e beleza, incólume à passagem das décadas, a imagem remete-nos para um passado tristemente desconhecido de muitos cidadãos, a ponto de alguns participantes nos concursos televisivos tenderem a ridicularizá-lo como coisa dispensável porque, como às vezes dizem a propósito de temas desse passado, “eu ainda não tinha nascido”…
Ainda assim, falemos de gritos. Através de um rudimentar, mas sugestivo, esquematismo histórico, conseguimos perceber que, entre 1951 e 2022, algo mudou na relação dos extremismos humanos com as câmaras. Repito e sublinho: na relação com as câmaras.
O grito de Brando é apenas um detalhe de uma performance (e um filme) que, de facto, lançou o primeiro acto de uma verdadeira revolução cinematográfica. Os intérpretes ligados ao Actors Studio (de que Kazan tinha sido um dos fundadores, em 1947) definiram uma nova teatralidade dos corpos e das palavras que, paradoxalmente ou não, gerou uma fascinante linguagem cinematográfica — lembremos que nessa primeira vaga do Actors Studio encontramos nomes como James Dean, Paul Newman, Joanne Woodward, Montgomery Clift, Ellen Burstyn… sem esquecer que Marilyn Monroe também por lá passou.
“Stella!” é um grito que não se esgota na angústia amorosa do colérico e frágil Stanley. Não existe como mero apontamento “psicológico” para definir a personagem. É um gesto de representação que, em cinema — através do olho clínico da câmara de filmar —, encontra a sua razão narrativa, consolidando-se no nosso olhar como acontecimento visceralmente dramático.
A câmara existia, assim, como testemunho técnico e formal de um evento singular, singularmente humano. Saltando mais de 70 anos, deparamos com a tragédia contemporânea dos olhares: o papel revelador da câmara perdeu poder cultural, deixou de suscitar a paixão contraditória das linguagens, dando lugar à promiscuidade visual de que os nossos telemóveis e as redes (ditas) sociais são o novo teatro. No futebol televisivo, isso traduz-se num comportamento que, como se prova, se instituiu como fórmula global de espectáculo. A saber: os adeptos de futebol vêem uma câmara e desatam aos gritos para… Para quem?
Vivemos tempos de metódica desqualificação da complexidade do factor humano. Tal fenómeno é mesmo exponenciado como linguagem triunfante do quotidiano e dos seus valores “sociais”. De tal modo que berrar para o mundo — encarando a câmara como oráculo redentor, sem fronteiras, realmente global — passou a funcionar como gesto de afirmação individual e, mais do que isso, ritual de pertença a um determinado colectivo que, garantem-nos, corresponde a uma saudável forma de patriotismo.
O que, enfim, nos abre mais um inusitado espaço de reflexão. A saber: o do sofrimento. Porquê? Porque, num plano meramente contabilístico, para lá da gritaria, a palavra “sofrimento” associada ao futebol se tornou muito mais frequente do que em qualquer abordagem da guerra na Ucrânia. Como lidar com esta banalização cognitiva? Talvez escolhendo a companhia de Marlon Brando e arriscando um grito catártico: “Stella!”