domingo, novembro 13, 2022

Amesterdão, uma utopia americana

Hollywood no seu melhor:
Christian Bale, Margot Robbie e John David Washington

O novo filme de David O. Russell, Amesterdão, refaz para os nossos dias um riquíssimo património literário e cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 outubro).

Com motivações diversas, por vezes contraditórias, passou a ser moda usar a palavra “narrativa”. Acontece que, por efeito da mediocridade filosófica de muitos discursos que circulam através da cena política, banalizou-se uma perspectiva pueril: “narrativa” deixou de ser o resultado de uma construção (narrativa, precisamente) apostada em lidar com a complexidade do mundo à nossa volta, para passar a ser reduzida a um exercício, tendencialmente suspeito, empenhado em mascarar evidências desse mesmo mundo. Quem trata assim a “narrativa” está apenas a tentar impor a sua própria visão como a única que pode avalizar tais evidências — ingenuamente, acredita mesmo que, certamente por bênção divina, não está a desenvolver qualquer trabalho narrativo.
David O. Russell
Nada de novo. De Dostoievski a Eça de Queirós, o romance do século XIX ensinou-nos a conhecer tais questões, incluindo as formas de incerteza, sedução e inquietação que podem arrastar. E o cinema também, claro: para nos ficarmos por uma referência modelar, lembremos a obra do grande Joseph L. Mankiewicz e o esplendor desses bailados de narrativas cruzadas que são filmes como All About Eve/Eva (1950) ou A Condessa Descalça (1954).
O novo filme de David O. Russell, Amesterdão, é um notável herdeiro desse património literário e cinematográfico, talvez mais do primeiro que do segundo — apetece dizer: mais F. Scott Fitzgerald que John Ford. O ponto de partida, de uma só vez factualmente vago e simbolicamente perturbante, é uma conspiração que, na primeira metade da década de 1930, numa conjuntura de avanço de diversas forças fascistas ou fascizantes, terá tentado afastar Franklin D. Roosevelt da Casa Branca e lá colocar um governo ditatorial.
A partir dessa referência, Russell, também argumentista, constrói uma fascinante teia de acontecimentos centrada num trio cuja amizade foi cimentada por experiências partilhadas na Primeira Guerra Mundial: Burt Berendsen e Harold Woodsman, dois militares, o primeiro médico, o segundo advogado, e Valerie Voze, uma enfermeira. Se mais não houvesse, os seus intérpretes — Christian Bale, John David Washington e Margot Robbie, respectivamente —, são a prova muito real de que, apesar dos corpos digitais com que Marvel & Cª. vão (des)educando os espectadores mais jovens, a mais nobre tradição de representação de Hollywood mantém-se viva e recomenda-se.
Não estamos, entenda-se, perante esse academismo mais ou menos televisivo (aplicado por muitas séries “históricas” lançadas em streaming) que consiste em conceber a “reconstituição” do passado como uma acumulação mimética de cenários e guarda-roupa. Claro que há um imenso cuidado no tratamento de tais elementos que, em qualquer caso, não são um fim em si mesmo. O que mais conta para a narrativa de Amesterdão é o modo como a época retratada se apresenta como um imenso fresco existencial e político, por um lado obrigando cada personagem a repensar a sua própria identidade, por outro lado questionando a volatilidade dos valores capazes de cimentar toda uma sociedade — e creio que não será necessário sublinhar como a saga de Burt, Harold e Valorie contém ecos das convulsões políticas no presente dos EUA.
O facto de Russell pontuar o filme em off, alternadamente, através das vozes das três personagens principais é revelador da sua moral narrativa. Não se trata de eleger alguém como “ponto de fuga” heróico da acção, mas sim de construir um puzzle de situações através do qual compreendemos que a história que cada um vive tem tanto de pensado e programado como de frágil e imponderável.
Daí também a ambivalência do próprio registo narrativo: aquilo que, numa cena, surge como comédia de costumes pode, na cena seguinte, renascer como potencial tragédia histórica. Gil Dillenbeck, o veterano interpretado por Robert De Niro, será o símbolo modelar desse ziguezague: começamos por vê-lo como caricatura de um certo modelo de militar para, por fim, através dele reconhecermos a gravidade das implicações políticas dos factos narrados.
Com uma agilidade rara, a câmara de Russell sabe expor a vertigem de tudo isso sem nunca alienar a dimensão realista da própria época retratada. E também a sua ambígua geografia afectiva. Afinal de contas, a cidade de Amesterdão, onde o trio central vive o pós-guerra num clima de felicidade que todos sabem que só pode ser efémero, corresponde a uma singular dimensão utópica — a mitologia de Hollywood é indissociável da inspiração narrativa da nossa Europa.