sábado, novembro 19, 2022

A pintura como arte do tempo

"Homem a oferecer dinheiro a uma jovem":
um quadro de 1631 revisto no nosso presente

Um quadro holandês do século XVII “reaparece” num romance da americana Katie Kitamura: o presente é feito de muitos passados — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 novembro).

Reparem neste quadro. Que acontece? Com a mão direita, um homem oferece algumas moedas a uma jovem. Ela está a bordar à luz de uma lamparina, absorvida no seu trabalho, os pés aquecidos por uma caixa com brasas de carvão. A composição está carregada de sugestões implícitas. Desde logo pelo contraste entre a “brancura” dela e o “negrume” dele, ampliado pela respectiva sombra: as moedas são uma arma de sedução, tentando comprar os favores (sexuais, por certo) da mulher — ela persiste na distância casta que o seu próprio trabalho significa.
Estamos perante uma pintura muitas vezes, justificadamente, citada pela sua linguagem feminista. Seja como for, e por mais que alguns maniqueísmos ideológicos queiram tratar todas as relações masculino/feminino em função das convulsões do nosso presente, convém não excluir a densidade das memórias. Quanto mais não seja porque se trata de um quadro com data de 1631. Foi, de facto, há quase quatro séculos que a holandesa Judith Leyster (1609-1660) pintou este “Homem a oferecer dinheiro a uma jovem”. É uma das preciosidades do Museu Mauritshuis, na cidade de Haia, instituição em que obras-primas de Rembrandt ou Vermeer coexistem com objectos tão especiais como este — sem esquecer que, na sua época, Leyster foi uma das raras mulheres a construir uma obra realmente pessoal.
Agora, “Homem a oferecer dinheiro a uma jovem” ressurge, se assim nos podemos exprimir, num romance de Katie Kitamura, escritora americana, de ascendência japonesa, nascida em Sacramento, Califórnia, em 1979. Chama-se Intimidades e foi recentemente editado entre nós pela Quetzal (com tradução de Tânia Ganho) — a narradora, cujo nome não chegamos a conhecer, é uma mulher de Nova Iorque que, depois da morte do pai, vai trabalhar como tradutora para o Tribunal Internacional de Haia.
No capítulo 10 do livro, essa personagem central visita o Mauritshuis e descobre o quadro. Surpreendida pelo facto de Leyster ter “uns meros vinte e dois anos quando o pintou”, ao mesmo tempo reconhecendo o seu poder figurativo, universal e intemporal, contempla aquilo que chama a “inconsistência presente no âmago da imagem”. Inconsistência, entenda-se: uma magnífica “ambiguidade”. Escreve ela: “Por mais que eu olhasse para o quadro, não conseguia conciliar a modéstia perfeita da rapariga, cujo corpo estava todo coberto, tirando o rosto e as mãos, com o comportamento lascivo do homem e a sua oferta. Talvez ele estivesse simplesmente a oferecer-se para lhe comprar o pano bordado? Mas, se assim era, porquê a expressão de medo na cara da rapariga? Porquê a concentração da jovem, tão frágil e carregada de significado, como se fosse a única forma de recusa que lhe era permitida?”
Esta descrição da narradora, também ela ambígua e em aberto, não pretende, como é óbvio, satisfazer as regras de qualquer enquadramento histórico do quadro (para isso, sugiro consulta do excelente site oficial do Mauritshuis). O que aqui encontramos é uma rima perfeita com o tom fragmentário de Intimidades, romance que talvez possamos definir como uma metódica exploração de uma escrita que prefere o anti-clímax a qualquer “explosão” dramática das suas componentes.
Qual é, afinal, o núcleo narrativo do romance? Será o facto de, no seu trabalho, a narradora se deparar com matérias tão perturbantes como os horrores perpetrados por um ditador africano? Ou será a sua relação com um homem, de nome Adriaan, que parece enredado num divórcio sem conclusão à vista? Ou será “apenas” uma cena pintada por uma mulher do século XVII?
A certa altura, ela enfrenta uma ausência de Adriaan (para, ao que ela supõe, concluir o seu divórcio), ficando a viver na casa dele, casa ainda exibindo as marcas do seu casamento. Como Adriaan vai adiando o regresso, sem notícias claras do que está a acontecer, ela acaba por voltar para o seu apartamento. Já perto do final, regressa à casa para ir buscar um livro antigo que comprara (livro com um papel importante em vários momentos do romance). Para ir buscar um livro…“ou pelo menos foi isso que disse a mim própria.” Daí a sensação de um inclassificável exílio, condensado neste desabafo íntimo: “Senti-me, atravessando a casa, transparente.”
Talvez que, na sua sábia contenção, Intimidades seja um livro sobre essa transparência em que, afinal, todas as coordenadas afectivas parecem vacilar, levando-nos a sentir a frágil duração, e as muitas ambiguidades, do acto de viver. Até porque nos quadros do Mauritshuis podemos contemplar o fascínio de todas as artes narrativas, quer dizer, “o peso do tempo a passar”.