segunda-feira, outubro 24, 2022

Uma memória de Auschwitz

Tendo como ponto de partida a história verídica de um homem que esteve preso em Auschwitz, O Sobrevivente é um projecto de boas intenções, drasticamente limitado pelo esquematismo das suas soluções dramáticas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 outubro), com o título 'Da tragédia histórica ao simplismo dramático'.

A história da personagem central de O Sobrevivente cruza, de forma inusitada e perturbante, o drama pessoal e a tragédia colectiva. O judeu polaco Harry Haft (1925-2007) foi, de facto, um sobrevivente dos horrores do campo de concentração de Auschwitz, sendo o filme baseado na biografia escrita pelo filho (editada pela Syracuse University Press, em 2006).
Com assinatura do veterano Barry Levinson — celebrizado por títulos como Bom Dia, Vietname (1987) ou Rain Man - Encontro de Irmãos (1988) — o filme organiza-se através de um vai-vém de memórias entre o começo da década de 1960, as convulsões da guerra e a segunda metade dos anos 40, quando Haft, em Nova Iorque, começa uma carreira de pugilista que o leva a desafiar o campeão Rocky Marciano.
Para Haft, a experiência do boxe tinha começado em Auschwitz, quando um oficial nazi, depois de observar o seu envolvimento numa rixa com um soldado, viu nele um potencial “homem de espectáculo”. Na prática, esse oficial passou a organizar combates de Haft com outros prisioneiros, com um desenlace único: o derrotado seria, de imediato, abatido. Vencendo várias dezenas de combates, Haft sobreviveu, consigo transportando um duplo assombramento: por um lado, tornou-se conhecido no mundo americano do boxe com o rótulo de "sobrevivente de Auschwitz"; por outro lado, a sua odisseia pessoal marcou-o por um misto de culpa e desejo de redenção que, de alguma maneira, marcou todos os que partilharam a sua intimidade.
[Syracuse U.P.]
No plano cinematográfico, convenhamos que não seria fácil conjugar os contrastes de tão complexos cenários históricos, a começar pela caracterização, física e psicológica, do próprio Haft. O actor americano Ben Foster apostou forte na personagem (emagreceu de forma radical para as cenas do campo de concentração), mas a sua composição, infelizmente, fica-se pela “demonstração” de um método de trabalho, tornando a personagem esquemática e, de algum modo, previsível.
Os problemas maiores de O Sobrevivente decorrem da sua dramaturgia, nomeadamente no contraponto que se vai estabelecendo entre a conjuntura de guerra e os tempos vividos nos EUA — os efeitos de montagem que o filme explora através das cenas de Auschwitz (em imagens a preto e branco) são mesmo algo gratuitos e, no plano emocional, francamente simplistas. Ainda assim, os trunfos maiores estão do lado dos intérpretes secundários, sobretudo Billy Magnussen (o oficial nazi) e Vicky Krieps (a mulher com quem Haft se casa nos EUA).
Para lá das suas características específicas, é forçoso assinalar O Sobrevivente como mais uma bizarra “originalidade” do mercado português, até porque, na maior parte dos países, tem circulado pela plataforma HBO Max — estamos mesmo perante uma produção de raiz televisiva, como tal recentemente nomeada para o Emmy de melhor telefilme. Não será “melhor” nem “pior” por causa disso, mas não deixa de ser desconcertante que, ao mesmo tempo, entre nós, haja cada vez mais títulos importantes da produção americana que ninguém arrisca colocar nas salas.