domingo, outubro 30, 2022

Joseph Losey: espelhos e fantasmas

Dirk Bogarde e James Fox em O Criado (1963):
assombramento e tragédia

Apesar de todas as crises do mercado, o DVD continua a ser uma via possível para conhecermos a diversidade da história do cinema: agora podemos ver ou rever cinco títulos fundamentais, realizados na Europa, pelo americano Joseph Losey — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 outubro), com o título 'O cinema é um espelho dos nossos fantasmas'.

Podemos entregar-nos a infinitas especulações, ora pragmáticas, ora nostálgicas, sobre o facto de os mercados cinematográficos terem desinvestido na área do DVD. O certo é que, apesar disso (porventura contra isso), continuamos a ter a possibilidade de descobrir alguns clássicos em formato digital, em edições para consumo caseiro. Tem acontecido, por exemplo, com vários títulos lançados pela Academia Portuguesa de Cinema, em colaboração com a Cinemateca. E acontece agora, com chancela da Leopardo Filmes: nada mais nada menos que cinco filmes de Joseph Losey (1909-1984), reunidos numa caixa de DVD com o subtítulo “Cineasta essencial”.
Essencial, sem dúvida, Losey começa por sê-lo pela bizarra ambivalência cultural e histórica que pontua a sua trajectória criativa. Ironicamente, poderemos dizer que essa trajectória o define como uma espécie de contraponto de Alfred Hitchcock. Assim, o “mestre do suspense” surge muitas vezes citado como um dos nomes grandes da idade de ouro de Hollywood (estatuto indiscutível, claro), omitindo as suas origens inglesas e, mais do que isso, o começo da sua actividade na Grã-Bretanha, onde assinou mais de duas dezenas de filmes; Losey, por seu lado, e sobretudo graças a essa obra-prima que é O Criado (incluído nesta edição), tende a ser encarado apenas como uma referência fundamental da produção britânica, esquecendo-se que nasceu nos EUA, aí realizando, até ao começo da década de 1950, uma parte significativa da sua filmografia.

Joseph Losey
Filmes de exílio

Losey foi, afinal, nas últimas três décadas da sua vida, um cineasta exilado. As suas colaborações teatrais com Bertolt Brecht e o compositor Hanns Eisler ao longo da década de 40, e também o facto de se ter filiado no Partido Comunista dos EUA em 1946, tornaram-no um alvo do “maccartismo” e dos processos de afastamento dos “vermelhos”, nessa altura implementados por vários estúdios de Hollywood. Acabou por sair dos EUA em meados de 1951, quando o seu filme The Big Night, um “thriller” com John Drew Barrymore, estava em fase de pós-produção.
Não se poderá dizer que a sua filmografia seja um reflexo “temático” desse dramático capítulo da sua biografia. Em qualquer caso, faz sentido sublinhar que alguns dos grandes momentos do seu trabalho são indissociáveis de uma visão muito crua, e também muito desencantada, das formas de poder que as relações humanas podem envolver.
Com argumento de Harold Pinter, a partir de um romance de Robin Maugham, O Criado persiste como um exemplo maior dessa arte subtil, visceralmente trágica. E tanto mais quanto nele deparamos com uma relação em que as diferenças de classe — o criado (Dirk Bogarde) e o seu amo (James Fox) — se cruzam com enigmáticas componentes homossexuais. Digamos, para simplificar, que a abordagem que Losey faz da(s) sexualidade(s) é o rigoroso contrário da “formatação” temática, por vezes moralista, que encontramos em algumas produções politicamente correctas dos nossos dias.
Em termos cronológicos, O Criado é o terceiro dos cinco filmes desta edição (todos em cópias restauradas). Antes dele surgem Prisão Maior (1960), com Stanley Baker, retrato contundente da violência no interior de uma prisão, na altura proibido em vários países, e Eva (1962), produção franco-italiana inspirada no romance homónimo de James Hadley Chase, protagonizada por Jeanne Moreau numa reinvenção das regras clássicas do “thriller” através de uma invulgar ambiência erótica — foi uma desilusão para o realizador devido aos cortes impostos pela produção, mas surge agora disponível com a duração desejada por Losey.

Uma arte pedagógica

Ver ou rever Losey envolve uma fascinante sensação de realismo (mesmo no muito pouco visto Dois Vultos na Paisagem, um conto abstracto sobre a violência datado de 1970). O seu impacto não é estranho a um elaborado paradoxo formal: Losey oferece-nos espelhos das componentes mais básicas e mais perturbantes da identidade humana, ao mesmo tempo que, com a perspicácia e a paciência de um pedagogo, nos dá a ver os elementos fantasmáticos das suas personagens. Os títulos finais desta edição — Acidente (1967) e Mr. Klein - Um Homem na Sombra (1976) — são notáveis exemplos da sua visão.
Acidente resultou de mais uma colaboração com Pinter, neste caso tendo como ponto de partida um romance de Nicholas Mosley centrado num pequeno grupo de personagens do meio universitário. Aqui, todos os movimentos passionais transportam uma carga de destruição (e auto-destruição) que, de alguma maneira, esclarece o cepticismo moral das narrativas de Losey: vivemos na miragem de uma inocência para sempre perdida. Sem esquecer que, como sempre, o trabalho com os actores tem tanto de delicado como de sofisticado — Dirk Bogarde e Stanley Baker regressam, contracenando com Jacqueline Sassard, Michael York e Delphine Seyrig.
Quanto a Mr. Klein, uma produção francesa, a sua história tem tanto de fresco histórico como de parábola política. A figura central do filme, Robert Klein, é um negociante de arte de Paris que, durante a ocupação pelos nazis, se aproveita da fragilidade dos judeus em fuga para adquirir obras por preços irrisórios. A partir do momento em que a sua identidade é confundida com a de um judeu também chamado Robert Klein, ele vai viver um pesadelo tornado realidade, de alguma maneira confrontando-se com a monstruosa “banalidade do mal” que Hannah Arendt escalpelizou. A não esquecer: no papel de Klein, Alain Delon mostra como a arte de representar consiste em lidar com todos os assombramentos que habitam a nossa frágil condição de seres vivos.