sexta-feira, outubro 28, 2022

A cinemateca de Jorge Moniz

Eis um álbum em relação ao qual somos tentados a usar um velho rótulo, sugestivo, mas simplificador: ambiências. Assim é, de facto, Cinematheque, de Jorge Moniz: uma colecção de composições de envolvente melodia e elaborada contenção, comandadas pelo piano de Jorge Moniz, também ele autor de oito dos nove temas (há um com assinatura de Paulo Freixinho e Nuno Matos).
E, no entanto, o rótulo rapidamente se esgota na caracterização do trabalho, até mesmo em termos meramente descritivos. Isto porque a "ambiência" arrasta a ideia de que a música se limita a criar um espaço/tempo para que "outras" coisas aconteçam... Ou como diz o lugar-comum: um "pano de fundo". De facto, o aqui contemplamos pode definir-se como uma inversão disso mesmo: Cinemateque é forma & fundo de uma aventura que se impõe como acontecimento total, totalmente envolvente.
Rezam as crónicas que se trata de um "desvio" de Jorge Moniz — além do mais, da bateria para o piano — em relação às paisagens jazzísticas do seu percurso criativo (ele que, importa lembrar, é um dos fundadores da Escola de Jazz do Barreiro). Talvez. Em qualquer caso, seria precipitado considerar que o depurado classicismo que aqui nos é dado ouvir se revela alheio, porventura oposto, a uma atitude criativa desprovida do gosto da deriva formal — porque, enfim, aquilo que prevalece é o risco essencial da experimentação.
O piano, o quarteto de cordas (Jorge Vinhas, Francisco Ramos, Eurico Cardoso, Emídio Coutinho), o clarinete (Ana Rita Pratas) e a voz (Inês Jacques) convocam-nos para momentos singulares a que, o título assim nos conduz, não podemos deixar de reconhecer uma sensibilidade cinematográfica, ou melhor, cinéfila. Dito de outro modo: os sons musicais apelam a imagens que existem, não como uma "ilustração", antes como uma outra narrativa que se cruza com o labor específico dos intrumentos, aceitando a sua contaminação estética — veja-se o exemplo de três videos do álbum, com realização de Fernando Silva.
Com grafismo de Chris Bigg, eis uma obra nascida na reclusão imposta pela pandemia e que, não apenas por isso, mas também por isso, apetece definir como uma cerimónia secreta, ainda que partilhável, em formato de música de câmara — e não será preciso abusarmos de simbolismos para lembrar que a palavra câmara se dá bem com o espírito do cinema.

>>> Do álbum Cinematheque: Forest Suite, Neblina e Cinematheque.