quinta-feira, setembro 01, 2022

Jordan Peele reinventa a fábula americana

Daniel Kaluuya e, ao fundo, Keke Palmer:
o "western" nunca existiu...

Com um pouco de terror e um toque de ficção científica, Nope, o novo filme de Jordan Peele, escapa aos lugares-comuns de qualquer género, propondo uma brilhante digressão pelos fantasmas da história dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 agosto).

[ Wikipedia ]
O trabalho do cineasta americano Jordan Peele (nascido em Nova Iorque, em 1979) tem sido rotulado a partir de dois parâmetros: o género de terror e as temáticas que, directa ou simbolicamente, remetem para a história social dos afro-americanos. Os seus dois primeiros filmes — Foge (2017) e Nós (2019) — consolidaram tal caracterização. Agora, com o muito aguardado Nope, dir-se-ia que podemos acrescentar mais uma componente ao seu retrato artístico. A saber: a atracção pela ficção científica – o aparecimento de um ovni (já pressentido no trailer) é mesmo, a certa altura, um fundamental motor dramático do filme.
Acontece que há no cinema de Peele uma dimensão lúdica, genuinamente experimental, que torna difícil, para não dizer impossível, a sua inscrição em qualquer modelo corrente de espectáculo. De forma indirecta, saborosamente irónica, o argumentista/realizador soube relativizar as especulações em torno do seu trabalho quando lhe foi pedido que explicasse o título do novo filme — isto depois do delírio “social” da Net ter inventado que Nope seria a sigla de “not of planet Earth” (“não do planeta Terra”). Em boa verdade, trata-se apenas de uma interjeição negativa, muito comum, várias vezes usada nos diálogos, reflectindo uma mescla de descrença e humor. Como quando, em vez de usarmos a palavra “não”, dizemos qualquer coisa do género: “Ná! Não é bem assim…”

1
História e ironia

Nope é a história de um assombramento. O filme começa mesmo por convocar o espectador para uma espécie de pacto irrealista. Mais exactamente: para uma sucessão de peripécias capazes de resistir a qualquer forma de racionalização — o que, em qualquer caso, não deixa de evocar matrizes clássicas do terror e da ficção científica.
Bastará dizer que as coisas começam a adensar-se quando Otis Haywood Jr. (Daniel Kaluuya, protagonista de Foge) assiste, impotente, à morte do pai (Keith David), em cima do seu cavalo, vitimado por uma insólita tempestade de objectos (moedas, isqueiros…). Os Haywoods, incluindo Emerald (Keke Palmer), irmã de Otis Jr., são proprietários de um rancho onde criam e treinam cavalos para as mais diversas participações em publicidade e produções de cinema e televisão — assistimos, aliás, a uma cena num estúdio em que as filmagens com um dos seus cavalos não correm nada bem.
Convenhamos que tudo isto envolve uma ironia histórica que o filme não deixa de sublinhar. Desde logo, porque ficamos a saber que, enquanto afro-americanos, os Haywoods (em especial o pai) são figuras de prestígio na produção de muitos filmes clássicos e, mais concretamente, na história do “western”, género em que as personagens negras estão longe de ter um lugar predominante. Depois, porque, lembra Emerald, a sua profissão possui uma linhagem que começa nas experiências do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge (1830-1904): numa das séries de Muybridge sobre os movimentos de um cavalo — tradicionalmente reconhecidas como um capítulo da “pré-história” do cinema —, encontramos um cavaleiro negro que, segundo os Haywoods, é antepassado da sua família.
Sugestões deste género pontuam todo o filme: da incrível cena de abertura em que assistimos a umas trágicas filmagens televisivas (incluindo uma perturbante alusão — foto 1 — à “Criação de Adão”, na Capela Sistina) até ao decadente “Jupiter’s Claim”, um parque temático dedicado ao “western” nas imediações do rancho dos Haywood. Sem esquecer que numa das paredes da casa há mesmo um cartaz de Buck and the Preacher/Direito por Linhas Tortas (1972), raríssimo “western”, dirigido e protagonizado por Sidney Poitier, também com Harry Belafonte e Ruby Dee, sobre os escravos libertados depois da Guerra Civil que tentam fixar-se em territórios do Oeste dos EUA.

2
Uma dimensão bíblica

Tudo isto implica um efeito desconcertante, calculadamente perverso: Nope é um filme feito de muitos elementos reconhecíveis, enraizados num certo imaginário cinéfilo “made in USA” — incluindo a figura do director de fotografia interpretado por Michael Wincott (foto 2) —, ao mesmo tempo que a sua vibração dramática se vai intensificando através de elementos e sugestões de natureza fantástica.
Certamente não por acaso, perpassa pelos três filmes realizados por Peele uma dimensão bíblica, dir-se-ia uma especulação apocalíptica sobre a infinita vulnerabilidade dos laços humanos. Essa sugestão surge mesmo na abertura de Nope, com a citação do profeta Naum, escrevendo sobre a queda do império assírio: “Lançarei sobre ti coisas abomináveis, envergonhar-te-ei e farei de ti um espectáculo.”
O mais espantoso em tudo isto é que não se trata, de modo algum, de fazer um filme de “mensagem”, saturado de “chaves” de interpretação capazes da apaziguar todas as dúvidas e hesitações que o espectador possa experimentar. Nope possui a energia primitiva de uma fábula em que a sedução do espiritual nasce das “coisas” de que se faz a vida material, incluindo, paradoxalmente, os fantasmas que circulam pela memória histórica do povo americano.