quarta-feira, agosto 03, 2022

Marco Bellocchio filma
a tragédia humana

Camillo e Marco Bellocchio
— saga familiar, odisseia cinematográfica

O italiano Marco Bellocchio volta a encenar uma saga familiar, desta vez a partir da sua própria história: Marx Pode Esperar evoca o seu irmão gémeo que se suicidou aos 29 anos: o resultado é um documentário de rara intensidade emocional — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 julho), com o título 'O cinema reencontrado entre a vida e a morte'.

Marco Bellocchio
Face a um filme como Marx Pode Esperar, revelado no Festival de Cannes de 2021, a partir de hoje nas salas portuguesas, qualquer sinopse parece insuficiente. Qualquer tentativa de resumo corre mesmo o risco de maquilhar com algum efeito retórico um objecto que se quer, antes de tudo o mais, seco, depurado e directo.
Que faz, então, o realizador Marco Bellocchio? Evoca o seu irmão gémeo, Camillo, que se suicidou em 1968, contava 29 anos. É um exercício de memória que implica toda a família. Marco reúne os outros irmãos e mais alguns familiares num almoço que serve de cena de abertura ao filme. Mais do que uma homenagem privada a Camillo, tal aparato envolve uma interrogação cinematográfica. A saber: por onde começar para voltar a falar de Camillo? Que imagens recuperar? Que palavras aplicar?
Digamos, para simplificar, que é raro um trabalho documental arriscar partir deste misto de saudade e silêncio para tentar lidar com algo que aconteceu há meio século (a certa altura, percebemos que pelo menos algumas imagens datam de 2018). Não se trata de satisfazer as regras convencionais de uma biografia, mas também não se procura encenar o trauma através de um dispositivo vulgarmente “vingativo” de redistribuição de culpas.
Aliás, aqui nada depende dessa lógica de “tribunal” que se transformou em linguagem dominante de algum moralismo televisivo — no futebol, por vezes, até mesmo um simples golo é discutido em função de quem é o “culpado”. Aqui pergunta-se o que aconteceu. Mais precisamente: que aconteceu ali mesmo, no nosso mundo, e nós não vimos?

O lado mortal

Podemos, talvez, explicar um pouco daquilo que Marco Bellocchio procura evocando um velho preceito existencial do cinema (e para o cinema) enunciado por Jean-Luc Godard. Tal evocação afigura-se tanto mais justificada quanto Bellocchio, desde os seus primeiros filmes — I Pugni in Tasca (1965), La Cina È Vicina (1967) —, representou em Itália, a par de Bernardo Bertolucci (1941-2018), uma clara derivação da Nova Vaga que então pontuava a produção francesa.
Assim, em 1962, numa entrevista à revista Cahiers du Cinéma (nº 138), Godard sugeria que se pensasse a dicotomia documentário/ficção a partir de uma lição de Jean Cocteau (1889-1963). Dizia ele que o cinema é a única arte que “filma a morte no trabalho”. Como e porquê? Godard esclarece e reforça as palavras de Cocteau: “A pessoa que estamos a filmar está a envelhecer e vai morrer. Filmamos, portanto, um momento da morte no trabalho.” Daí esta sugestiva comparação: “A pintura é imóvel; o cinema é interessante porque regista a vida e o lado mortal da vida.”
Ora, a vida breve de Camillo Bellocchio não chegou sequer para cumprir o seu destino cinematográfico — ver e ser visto. Há fotografias, claro, e também filmes de família, mas tudo se passa como se Camillo fosse a personagem que escapava sempre à narrativa que cada um ia construindo, desse modo escapando até à intimidade do romance familiar.
Tudo isso é tanto mais intenso e comovente quanto Marco Bellocchio está muito longe de procurar apenas sistematizar as vivências do luto que, em 1968, se abateu sobre a sua família. Sem ceder a qualquer determinismo ideológico ou procurar refúgio numa caução política, Marx Pode Esperar é também um filme sobre as convulsões de um tempo em que todas as relações humanas pareciam tocadas, porventura assombradas, pela miragem de um paraíso prometido. Camillo era um céptico desse tempo, vogando num certo imaginário de esquerda sem se entregar às delícias ambíguas da sua utopia: “Marx pode esperar” é um desabafo seu, estranhamente poético, lembrando que as ânsias colectivas de transformação deviam parar para pensar, reconhecendo o peso da solidão original de cada ser humano.

A memória dos filmes

Marco Bellocchio é o primeiro a ter consciência de que a perda do seu irmão gémeo foi também, em grande parte, sublimada através dos filmes que realizou. Daí os ziguezagues de montagem que vão pontuando Marx Pode Esperar, “ilustrando” os depoimentos dos familiares com fragmentos dos dois filmes já citados, ou ainda de Salto no Vazio (1980) e Gli Occhi, La Bocca (1982), este último centrado num actor de carreira desfeita que regressa à sua cidade na sequência do suicídio do irmão…
Marx Pode Esperar demonstra que esse poder de filmar “a morte no trabalho” que Cocteau refere e Godard retoma envolve, afinal, uma fundamental experiência política. Como se a vontade política de transformar o mundo nos levasse a enfrentar ou, pelo menos, pressentir que a imaginação do colectivo pode arrastar a desagregação das existências individuais — e também o seu contrário.
A esse propósito, lembremos que entre os títulos mais recentes de Bellocchio se incluem Vencer (2009), sobre uma paixão secreta de Benito Mussolini, e O Traidor (2019), evocando uma mafioso que decidiu colaborar com as autoridades. Num certo sentido, o gémeo Camillo simboliza o extremismo trágico da identidade humana: tão próxima e tão indecifrável.