quinta-feira, agosto 11, 2022

David Cronenberg já não mora aqui?

Viggo Mortensen em Crimes of the Future:
será que o novo Cronenberg não vai ser visto nas salas portuguesas?

Será que ser cinéfilo ainda é uma condição acarinhada pelas forças dominantes do mercado? Não parece, até porque se tornou urgente repensar os modelos de distribuição/exibição que foram gerados pelos multiplex — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 agosto), em paralelo com um artigo de Rui Pedro Tendinha.

Tudo indica que o mais recente filme do canadiano David Cronenberg — Crimes of the Future, com Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristin Stewart —, revelado no último Festival de Cannes, poderá não chegar às salas portuguesas. O que suscita uma pergunta didáctica: que está a acontecer para que uma obra de um cineasta de culto, marcante na história dos filmes das últimas quatro décadas, possa não encontrar espaço no nosso mercado?
Talvez seja útil lembrar que esta ausência não se explica (se é que é possível explicá-la…) apenas pelo filme em causa e as suas circunstâncias. Em boa verdade, estamos apenas perante um pormenor inevitavelmente sintomático de um processo de várias décadas. A saber: a decomposição dos laços das forças dominantes do mercado com os respectivos consumidores.
Claro que o desenvolvimento exponencial das plataformas de “streaming” alterou, a nível global, todas as dinâmicas do cinema — da produção à difusão. Resta saber se tal desenvolvimento basta para explicar a (falta de) lógica de uma ideologia promocional cujo esgotamento começou muito antes da consolidação do “streaming”.
As mesmas forças dominantes do mercado foram desviando as suas atenções (leia-se: os seus investimentos) para a promoção unilateral de alguns “blockbusters” americanos — “bons” ou “maus”, não é (nunca foi) essa a questão. Mais do que isso: instalaram um fosso brutal entre o ruído promocional em torno desses produtos e o quase silêncio que (des)acompanha a maioria dos outros.

A frieza dos números

O reflexo cru de tudo isso está nos números oficiais das bilheteiras, semanalmente divulgados pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual [ICA]. Quase sempre encontramos dois ou três títulos que vão acumulando 100 mil ou mais entradas, enquanto a maioria dos restantes raramente chega aos 10 mil (ou mesmo aos 5 mil). O próprio mercado foi sendo “partido” por dentro, deixando de — ou desistindo de trabalhar para — ter um número significativo de filmes “médios” (na frequência, entenda-se, com 40 ou 50 mil espectadores), essenciais para um razoável equilíbrio financeiro.
Nada disto é linear: os número absolutos podem, e devem, ser relativizados. Um exemplo parcelar mas, uma vez mais, sintomático, pode ajudar. Assim, no fim de semana de 21/24 julho, Thor: Amor e Trovão (que já ultrapassou os 200 mil bilhetes vendidos) teve, em média, 23 espectadores em cada uma das suas sessões. Quer isto dizer que, no mesmo período, Thor: Amor e Trovão mobilizou um número de espectadores que é 191 vezes maior que o correspondente a Rostos, um dos clássicos de John Cassavetes actualmente em reposição. E, no entanto, Rostos consegue uma frequência por sessão de 35 espectadores…
Há assim, apesar de tudo, alguma distribuição/exibição independente que, mesmo com drásticos limites, não desiste de pensar a relação com os públicos (plural, entenda-se). Mas quase ninguém quer lidar com o absurdo dos números referidos. É sempre mais fácil proclamar que assim vai o “gosto” do público (e usa-se sempre o singular). Quase ninguém está disposto a reconhecer que nada disto pode ser pensado se não começarmos por atentar no relativismo dos números. Que relativismo é esse? Pois bem, entre 21 e 24 de julho Thor: Amor e Trovão foi projectado 1201 vezes nas salas de Portugal. Quantas sessões se realizaram com Rostos? Quatro… Contas redondas: 300 vezes menos.
Ninguém sugere que Rostos teria condições para conseguir o mesmo número de espectadores de Thor: Amor e Trovão. Não se trata de promover uma corrida (os “meus” filmes contra os “teus”), mas de reconhecer que o mercado vive — e sobrevive mal — num jogo de desequilíbrios que só pode gerar aquilo que temos observado nas últimas décadas: um afunilamento da oferta e uma desagregação de qualquer base sólida de espectadores.

Cinefilia, o que é?

Algumas plataformas de “streaming” agravam tudo isto através de uma oferta que tem contribuído para o esvaziamento de qualquer cultura cinéfila. A lógica de supermercado (bastante mal arrumado…) tem dominado tais plataformas, promovendo junto do público uma noção preguiçosa do cinema: os filmes pertenceriam a uma entidade sem história, sem contrastes, alheia a qualquer gosto saudável de descoberta.
Como se isto não bastasse, a crise de frequência das salas (obviamente agravada pela pandemia) tem sido “compensada” através de um paradoxal salto para o abismo: instalou-se uma multiplicação delirante de estreias — passou a ser normal haver oito novos filmes numa semana, por vezes dez ou mais — que não está sustentada por nenhuma estratégia clara de difusão e promoção. Nem sequer pela mais básica informação.
A quantidade de títulos irrelevantes que chegam às salas é tanto mais desconcertante quanto reflecte uma dramática ausência de agilidade comercial e promocional, também ela “compensada” por um marketing enquistado nos ditames de super-heróis e afins. Os exemplos são, infelizmente, regulares. Veja-se o caso de O Pugilista, com Russell Crowe, estreado nas salas a semana passada, ao mesmo tempo que a Prime Video o lançava em streaming um pouco por todo o mundo: em Portugal mobilizou 437 espectadores em 93 sessões (média inferior a cinco espectadores por sessão).
Podemos aplicar a velha demagogia: “a culpa é dos críticos…” É verdade que quem quiser confortar-se com tal acusação, tem toda a liberdade para o fazer. Resta saber se isso ajuda alguém a contribuir para a resolução dos problemas acumulados. Cito apenas três: o esgotamento dos conceitos de distribuição e exibição que, nas últimas três décadas, tiveram os multiplex como emblema; o exclusivo das grandes promoções para os chamados “blockbusters”, menosprezando as potencialidades da maior parte dos restantes títulos; enfim, o tratamento dos filmes como produtos sem critérios de valor, abolindo qualquer componente cinéfila na relação com os espectadores. Sim, porque a cinefilia já foi um salutar factor comercial.