quinta-feira, junho 30, 2022

Wong Kar Wai
— alguns restos românticos

Maggie Cheung e Tony Leung em In the Mood for Love:
memórias e solidões de Hong Kong

Revendo os filmes de Wong Kar Wai numa magnífica edição em DVD, em particular In the Mood for Love, reencontramos um cinema que não desistiu do romantismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 junho).

Se o leitor conhece o filme In the Mood for Love (2000), realizado por Wong Kar Wai, saberá que a inspiração para o título provém da canção I’m in the Mood for Love — mais exactamente, da versão interpretada por Bryan Ferry, incluída nesse admirável álbum de “velharias” que é As Time Goes By (1999). Com um paradoxo a ter em conta: a canção não é escutada no próprio filme (mesmo se algumas edições da respectiva banda sonora a incluem). Desenha-se, assim, uma via de cumplicidades românticas que nos remete para o original da canção, composta por Dorothy Fields/George Oppenheimer (letra) e Jimmy McHugh (música), integrando a banda sonora da comédia romântica Every Night at Eight (1935), de Raoul Walsh — a interpretação era de Frances Langford [eis Ferry + Langford].




Sempre senti que a pulsão poética de tudo isto esbarra com o determinismo do título português do filme: Disponível para Amar. É, a meu ver, um dos exemplos “clássicos” de inadequação e, mais do que isso, traição simbólica que um título pode favorecer. A sugestão de que o par interpretado por Maggie Cheung e Tony Leung — dois seres solitários cujos parceiros estão ausentes — vive o amor através de alguma forma de “disponibilidade” situa a acção num terreno de escolhas racionais que, em tudo e por tudo, contraria o espírito romântico da narrativa.
Se Wong Kar Wai filma alguma coisa de palpável é, justamente, a proximidade dos corpos e dos desejos que existe… porque sim. Em boa verdade, é essa a premissa, consciente ou inconsciente, do romantismo cinematográfico. Podemos revisitar agora esse universo através de “Mundo de Wong Kar Wai”, uma magnífica caixa de DVD (Leopardo Filmes).
In the Mood for Love/Disponível para Amar surge num conjunto de sete títulos, em cópias restauradas, com assinatura daquele que é, afinal, um dos nomes fulcrais do cinema de Hong Kong. Cinco são anteriores: As Tears Go By/Ao Sabor da Ambição (1988), Days of Being Wild/Dias Selvagens (1990), Chungking Express (1994), Fallen Angels/Anjos Caídos (1995) e Happy Together/Felizes Juntos (1997); o último, 2046 (2004), enredado em sugestões de ficção científica, é normalmente encarado como uma sequela de In the Mood for Love (também porque os dois argumentos foram escritos em simultâneo).
A tragédia de uma maternidade incerta em As Tears Go By, as duas histórias paralelas de Chungking Express ou a ambiência queer de Happy Together são apenas alguns dos elementos mais óbvios de uma problematização do romantismo que escapa ou, em rigor, transcende a “disponibilidade” dos seus protagonistas. Porquê? Porque o romantismo envolve uma relação dúplice com o tempo presente: as personagens são peões incautos desse tempo, ainda que os seus desejos as projectem num outro calendário.
A esse propósito, Wong Kar Wai nunca deixou de sublinhar a importância simbólica da situação de In the Mood for Love no começo da década de 1960, em Hong Kong, pressentindo memórias de diferentes lugares e outras vivências (o próprio realizador nasceu em Xangai, em 1958). Paradoxalmente ou não, no plano cinematográfico, a sensibilidade romântica afirma-se como expressão de uma paixão narrativa que resiste a rotular as convulsões particulares de cada vida humana. Nesta perspectiva, a redescoberta de Wong Kar Wai através do DVD é tanto mais motivadora quanto vivemos — ou somos compelidos a viver — tempos de avassaladora indiferença por qualquer centelha de romantismo e, por fim, da sua metódica destruição.
Observe-se, a esse propósito, a normalização da noção mecânica e mecanicista segundo a qual há uma continuidade obrigatória entre um qualquer acontecimento, trágico ou não — seja a guerra na Ucrânia, seja o Jubileu de Isabel II —, e a sua “análise”. Que está, então, a acontecer? A instalação de um imaginário social e mediático, logo cultural, que nos obriga a sentir qualquer facto como “coisa” que só existe em determinado momento porque, nesse mesmo momento, o vamos afogar num qualquer “significado”.
Ora, Wong Kar Wai é um daqueles cineastas que sabe que nenhum significado pode esgotar, muito menos racionalizar, a vibração de um instante, por mais efémera ou indiferente que a sua duração possa parecer. Veja-se ou reveja-se a depurada utilização das imagens em câmara lenta para filmar alguns movimentos de Maggie Cheung e Tony Leung — como se o cinema desejasse fixá-los na intensidade de cada momento, libertando-os do desgaste do tempo.