Maggie Cheung e Tony Leung em In the Mood for Love: memórias e solidões de Hong Kong |
Revendo os filmes de Wong Kar Wai numa magnífica edição em DVD, em particular In the Mood for Love, reencontramos um cinema que não desistiu do romantismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 junho).
Se o leitor conhece o filme In the Mood for Love (2000), realizado por Wong Kar Wai, saberá que a inspiração para o título provém da canção I’m in the Mood for Love — mais exactamente, da versão interpretada por Bryan Ferry, incluída nesse admirável álbum de “velharias” que é As Time Goes By (1999). Com um paradoxo a ter em conta: a canção não é escutada no próprio filme (mesmo se algumas edições da respectiva banda sonora a incluem). Desenha-se, assim, uma via de cumplicidades românticas que nos remete para o original da canção, composta por Dorothy Fields/George Oppenheimer (letra) e Jimmy McHugh (música), integrando a banda sonora da comédia romântica Every Night at Eight (1935), de Raoul Walsh — a interpretação era de Frances Langford [eis Ferry + Langford].
Sempre senti que a pulsão poética de tudo isto esbarra com o determinismo do título português do filme: Disponível para Amar. É, a meu ver, um dos exemplos “clássicos” de inadequação e, mais do que isso, traição simbólica que um título pode favorecer. A sugestão de que o par interpretado por Maggie Cheung e Tony Leung — dois seres solitários cujos parceiros estão ausentes — vive o amor através de alguma forma de “disponibilidade” situa a acção num terreno de escolhas racionais que, em tudo e por tudo, contraria o espírito romântico da narrativa.
Se Wong Kar Wai filma alguma coisa de palpável é, justamente, a proximidade dos corpos e dos desejos que existe… porque sim. Em boa verdade, é essa a premissa, consciente ou inconsciente, do romantismo cinematográfico. Podemos revisitar agora esse universo através de “Mundo de Wong Kar Wai”, uma magnífica caixa de DVD (Leopardo Filmes).
In the Mood for Love/Disponível para Amar surge num conjunto de sete títulos, em cópias restauradas, com assinatura daquele que é, afinal, um dos nomes fulcrais do cinema de Hong Kong. Cinco são anteriores: As Tears Go By/Ao Sabor da Ambição (1988), Days of Being Wild/Dias Selvagens (1990), Chungking Express (1994), Fallen Angels/Anjos Caídos (1995) e Happy Together/Felizes Juntos (1997); o último, 2046 (2004), enredado em sugestões de ficção científica, é normalmente encarado como uma sequela de In the Mood for Love (também porque os dois argumentos foram escritos em simultâneo).
A tragédia de uma maternidade incerta em As Tears Go By, as duas histórias paralelas de Chungking Express ou a ambiência queer de Happy Together são apenas alguns dos elementos mais óbvios de uma problematização do romantismo que escapa ou, em rigor, transcende a “disponibilidade” dos seus protagonistas. Porquê? Porque o romantismo envolve uma relação dúplice com o tempo presente: as personagens são peões incautos desse tempo, ainda que os seus desejos as projectem num outro calendário.
A esse propósito, Wong Kar Wai nunca deixou de sublinhar a importância simbólica da situação de In the Mood for Love no começo da década de 1960, em Hong Kong, pressentindo memórias de diferentes lugares e outras vivências (o próprio realizador nasceu em Xangai, em 1958). Paradoxalmente ou não, no plano cinematográfico, a sensibilidade romântica afirma-se como expressão de uma paixão narrativa que resiste a rotular as convulsões particulares de cada vida humana. Nesta perspectiva, a redescoberta de Wong Kar Wai através do DVD é tanto mais motivadora quanto vivemos — ou somos compelidos a viver — tempos de avassaladora indiferença por qualquer centelha de romantismo e, por fim, da sua metódica destruição.
Observe-se, a esse propósito, a normalização da noção mecânica e mecanicista segundo a qual há uma continuidade obrigatória entre um qualquer acontecimento, trágico ou não — seja a guerra na Ucrânia, seja o Jubileu de Isabel II —, e a sua “análise”. Que está, então, a acontecer? A instalação de um imaginário social e mediático, logo cultural, que nos obriga a sentir qualquer facto como “coisa” que só existe em determinado momento porque, nesse mesmo momento, o vamos afogar num qualquer “significado”.
Ora, Wong Kar Wai é um daqueles cineastas que sabe que nenhum significado pode esgotar, muito menos racionalizar, a vibração de um instante, por mais efémera ou indiferente que a sua duração possa parecer. Veja-se ou reveja-se a depurada utilização das imagens em câmara lenta para filmar alguns movimentos de Maggie Cheung e Tony Leung — como se o cinema desejasse fixá-los na intensidade de cada momento, libertando-os do desgaste do tempo.