segunda-feira, junho 20, 2022

Vieirarpad
— elogio da pintura e dos seus bichos

Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes:
escrever, pintar, filmar

Tendo como base a correspondência entre Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, no período 1932-1961, o documentário Vieirarpad, realizado por João Mário Grilo, convoca-nos para uma viagem fascinante na intimidade da pintura — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 junho).

O lançamento do documentário Vieirarpad, de João Mário Grilo, acontece num contexto em que a dinâmica do mercado cinematográfico passou a estar marcada por desequilíbrios brutais que os agentes políticos e culturais nem sempre têm mostrado disponibilidade para reconhecer. Exemplo esclarecedor: de acordo com o portal Sapo, o filme surgirá, para já, em nove salas do país; entretanto, consultando os números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, ficamos a saber que, na semana passada, Top Gun: Maverick foi lançado em 147 ecrãs.
Há um misto de desinformação e má fé que levará a concluir (?) que o crítico está a sugerir que Vieirarpad deveria ter o mesmo enquadramento comercial da mais recente aventura de Tom Cruise. Enfim, não é fácil (do meu ponto de vista, é quase impossível) desmontar o simplismo argumentativo que, há muitas décadas, alimenta estes debates de coisa nenhuma, por vezes ampliados pelo vício mediático das falsas polémicas.
Simplificando (até porque simplicidade não é o mesmo que simplismo), lembremos apenas que os valores culturais dominantes — de que o marketing ligado aos grandes estúdios americanos é um instrumento poderosíssimo — tendem a secundarizar um objecto como Vieirarpad e a sua belíssima ousadia criativa. Nada disto, entenda-se, contraria o facto de o crítico continuar a reconhecer a admirável criatividade do cinema “made in USA”, incluindo alguns títulos de Tom Cruise… mas como diria Billy Wilder: “Isso é outra história!”

Palavras íntimas

O fascínio de Vieirarpad começa no seu título. Resulta, como é óbvio, da conjugação de Vieira e Arpad, ou seja, Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) e Arpad Szenes (1897-1985). Na origem do projecto está uma exposição intitulada “Escrita Íntima” (2014), acompanhada de um livro com o mesmo título, reunindo a correspondência entre os dois artistas trocada no período 1932-1961. Produzido por Fernando Centeio (ZulFilmes), integra depoimentos, entre outros, de Marina Bairrão Ruivo, directora do Museu Arpad Szènes-Vieira da Silva, da museóloga Raquel Henriques da Silva e do galerista Jean-François Jaeger.
A fusão dos nomes consagrada no título envolve uma poética amorosa que está para além (talvez aquém) das cumplicidades estéticas — sem esquecer que cada um dos pintores foi frequentemente retratado pelo outro (sobretudo Vieira por Arpad). Dito de outro modo: sendo uma metódica redescoberta do trabalho dos dois artistas, Vieirarpad é também uma viagem através das palavras que trocaram nesse outro universo de radical intimidade que pode ser a escrita.
Lidas por Luís Lucas, Suzana Borges e Fernanda Lapa, as cartas de Vieirarpad renascem, assim, como pontuações biográficas que estão para lá de qualquer noção académica de testemunho de uma vida comum (o que, entenda-se, já não seria pouco). Através da via epistolar, Vieira e Arpad vão preenchendo o espaço e, num certo sentido, recriando o tempo das suas separações: as cartas desenham novas paisagens afectivas capazes de acolher os gestos amorosos feitos de palavras mais fortes que qualquer distância.
Há em tudo isso a carinhosa animalidade de quem inventa com o outro — e para o outro — o pudico jardim de uma nova zoologia. O tratamento de “bicho” e “bichinho” vai pontuando as cartas como matéria de uma gramática que se liberta de qualquer sistema corrente de linguagem e comunicação. Ponto importante na revisitação de tais memórias é a recuperação de alguns extractos de outro magnífico documentário sobre Vieira e Arpad: Ma Femme Chamada Bicho (1978), de José Álvaro Morais.

A paixão da arte

Sendo um objecto relativamente solitário no actual panorama da distribuição/exibição cinematográfica, o filme de João Mário Grilo tem boa companhia na história do cinema português. Para nos ficarmos pela referência tutelar de Manoel de Oliveira, recordemos as suas curtas-metragens O Pintor e a Cidade (1956) e As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965), respectivamente sobre os trabalhos de António Cruz e Júlio/Saúl Dias, irmão de José Régio.
Sabemos, aliás, que as relações de cinema e pintura são inúmeras e multifacetadas — da dimensão épica de Andrei Rublev (1966), de Andrei Tarkovsky, à biografia anti-romântica de Francis Bacon em Love Is the Devil (1998), de John Maybury, passando pelo esplendor de A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956), de Vincente Minnelli, a especulação filosófica de Paixão (1982), de Jean-Luc Godard, ou a perturbante vibração sensorial de Van Gogh (1991), de Maurice Pialat. São, sobretudo, relações capazes de convocar o olhar do espectador para algo mais do que a mera confirmação do lugar histórico ou do valor simbólico de determinado pintor.
Escusado será dizer que na delicada depuração narrativa de Vieirarpad acompanhamos uma relação com a pintura em que o trabalho artístico, muito mais do que suporte de uma qualquer “mensagem”, decorre de um entendimento específico da vida, da arte de viver. Como escreve Arpad: “Não te deixes dominar por nenhuma paixão política, a nossa é a arte.”