Um emblema histórico: de que falamos quando falamos de futebol? |
Com a descida da Académica à “terceira divisão”, fica ainda mais secundarizado um clube que já simbolizou outras formas de viver o futebol — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 maio).
Terminada a época futebolística, a equipa da Associação Académica de Coimbra desceu à “terceira divisão”. Bem sei que a designação dos campeonatos há muito abandonou este modelo de classificação (agora há ligas, campeonatos de Portugal e não sei que mais), mas faço questão em escrever assim. Porquê? Porque, ao tomar conhecimento do último lugar da Académica na “segunda divisão”, não pude deixar de me recordar dessas designações, ou melhor, do meu pai e das nossas conversas sobre futebol.
Na minha infância vivíamos em Pombal e, como outros habitantes da vila (sim, era ainda uma vila), íamos de vez em quando a Coimbra assistir aos jogos da Académica. Nunca estudei, nem sequer vivi, em Coimbra — de qualquer modo, para mim, a cidade sempre foi a terra da Académica. Ao que parece, depois de duas derrotas da equipa dos estudantes — com o Benfica (1-2) e o F. C. Porto (1-5), se a memória não me engana —, declarei-me adepto da Académica, sentido-me, ainda sem o saber, para sempre fora dessa compulsão pueril que obriga cada cidadão português a ser militante de um dos três “grandes” (que, em boa verdade, nessa altura eram quatro, incluindo o Belenenses).
O meu pai tinha a nobreza de quem, face às convulsões do futebol, resistia a todos os maniqueísmos clubistas. Sem que na altura pudesse sequer pressentir que isso estava a acontecer, com ele aprendi a admirar e, mais do que isso, a desfrutar o facto de um jogo de futebol não ser uma ficção unívoca, antes um acontecimento com duas equipas, nessa medida solicitando a nossa disponibilidade — e uma paciente atenção — para os talentos de todos os que estão em campo.
Embora tenha falecido há quase trinta anos, num tempo em que, apesar de tudo, a saturação futebolística do tecido social & mediático não tinha o gigantismo do presente, era com desgosto, por vezes cruel sarcasmo, que observava as muitas formas de clubismo histérico. Ensinou-me a ver e perceber, por exemplo, que a própria Académica emanava de um conceito de desporto em que o empenho no jogo nunca secundarizava outros valores, a começar pelo caloroso simbolismo enraizado na relação com a Universidade.
Simpatizante do Benfica, contava-me com genuína alegria que tinha estado presente no Campo das Salésias (do Belenenses), na primeira final da Taça de Portugal, em 1939, em que a Académica venceu o Benfica por 4-3. Sem esquecer que vibrámos com a brilhante equipa que a Académica teve em meados da década de 60, com jogadores como Maló, Curado, Rui Rodrigues, os irmãos Campos (Vítor e Mário), Toni ou Artur Jorge — na época de 1966-67, essa equipa conseguiu mesmo o segundo lugar do campeonato (ganho pelo Benfica).
Sinto, agora, que a dramática desqualificação da Académica, muito para lá das minhas memórias familiares, corresponde ao definhar de uma bela cultura futebolística — de gosto pelos contrastes do jogo jogado — que, nestes tempos de conflitos “obrigatórios”, se foi tornando cada vez mais débil. Um sinal revelador desse processo é o facto de proliferarem discursos — do jornalismo à política — apostados em alimentar uma lamentável dicotomia: de um lado estaria o futebol como festivo fenómeno “neutro”, do outro a chamada vida cultural.
Creio, assim, que importa relembrar que o território cultural se faz das dinâmicas de valores associados a todas as trocas sociais — não é um domínio estável, está mesmo pontuado por muitas diferenças e tensões, nem existe por decreto, por melhores que sejam as intenções de quem legisla. E uma vez que o futebol todos os dias serve para sustentar discursos “patrióticos” ou para dirimir questões de “justiça”, importa também acrescentar que a nossa existência social está marcada por componentes culturais que envolvem o futebol como matriz dominante dos nossos comportamentos e, de forma muito sistemática, dos valores identitários que se incutem nos mais jovens.
O tratamento audiovisual do futebol tem também contribuído para uma desvalorização da liberdade dos olhares. De facto, embora definindo-se apenas como “juiz” de validação dos golos, o VAR tem vindo a contaminar o espaço audiovisual com uma noção perniciosa (culturalmente perniciosa, quero eu dizer): do futebol à política, passando pelo patético imaginário dos “famosos”, as imagens tendem a ser implicitamente tratadas e, mais do que isso, promovidas como meros instrumentos vigilantes de uma “verdade” que, ao ser enunciada, purificaria tudo e todos.
Que se está a perder? Face à desvalorização social das outras imagens (cinema, fotografia, pintura, etc.), instala-se implicitamente uma ideia preguiçosa segundo a qual só olhamos as imagens em geral para procurar validar uma forma compulsiva de unicidade e significação. Ora, como explicar a um jovem que nenhum VAR (ou seu derivado) vai estabilizar, muito menos esgotar, os significados de um quadro de Pablo Picasso, uma fotografia de Robert Frank ou um filme de Ingmar Bergman? Como ensinar que as imagens são algo mais do que armas de “policiamento” dos actos humanos? Entretanto, faço votos para que a Académica comece a sua odisseia de regresso à primeira divisão — o meu pai ficaria contente.