Pathos Ethos Logos: cinema do visível, arte do invisível |
Eis uma genuína aventura cinematográfica: Pathos Ethos Logos devolve-nos as imagens, a paixão e o pressentimento do sagrado — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 abril).
* NOTA: o primeiro período de exibição de Pathos Ethos Logos decorreu no cinema Ideal, de 14 a 20 de abril).
Já está em exibição o filme monumental (em todos os sentidos) de Joaquim Pinto e Nuno Leonel: Pathos Ethos Logos encontra-se em Lisboa, no cinema Ideal (até dia 20), para depois começar a circular por outras salas do país. As suas muitas e fascinantes singularidades — muito para lá da invulgar duração de 641 minutos, abrangendo as três partes que o título identifica — fazem com que não seja possível reduzi-lo a um “tema”. Dir-se-ia que estamos mesmo perante um objecto que, em última (ou primeira) instância, nos quer questionar sobre o que é “isso” de assistir a um filme, afinal partilhando com o próprio filme uma fatia, também ela invulgar, da nossa existência.
Começo, aliás, recomeço por uma sugestão que surge já perto do final da terceira parte, lembrando que o conhecimento do mundo não se esgota, ou melhor, não se fecha nunca num sentido único e definitivo. Aí se evocam estas palavras do poeta indiano Rabindranath Tagore (1861-1941): “Chama-me para a tua calma, refrigerante, profunda, santa obscuridade. Torna-me livre na tua serena, tácita, transbordante, infinita obscuridade.”
Que obscuridade é esta? Creio que será sempre precipitado tratar de forma ligeira ou irónica as palavras de Tagore, acabando por confundir o elogio da obscuridade com alguma forma de obscurantismo. Até porque o reconhecimento natural dessa obscuridade — ou da obscuridade como elemento visceral da natureza humana — nos chama a atenção para outra palavra, maltratada pelo consumismo em que vivemos, palavra que vale a pena, pelo menos, recolocar no nosso horizonte de pensamento: misticismo.
Neste contexto, como o filme esclarece, o místico não é tanto o “sonhador”, mas o insolitamente realista: aquele que tem consciência dos limites de qualquer desejo ou gesto de conhecimento, aceitando de forma paradoxal — isto é, continuando a querer conhecer — que há uma zona de obscuridade que vai sempre permanecer no nosso entendimento do mundo.
No seu livro mais radical, O Prazer do Texto (Edições 70, Lisboa), Roland Barthes, não exactamente um místico, reconhecia o poder normativo das “linguagens de repetição” (a escola, o desporto, a publicidade, etc.), recordando que, no plano cultural, a oposição “dá-se sempre e por toda a parte entre a excepção e a regra.” Daí esta conclusão perversamente política: “A regra é o abuso, a excepção é a fruição. Por exemplo, em certos momentos, é possível defender a excepção dos Místicos” (a maiúscula é do próprio Barthes).
É verdade que a personagem de Cristo e, mais do que isso, os temas e a iconografia do cristianismo pontuam todas as narrativas parcelares que contribuem para a grande narrativa que é Pathos Ethos Logos. Em todo o caso, seria demasiado simplista encarar o trabalho de Joaquim Pinto e Nuno Leonel como uma “ilustração” de um qualquer sentido religioso. O filme assume-se antes como montra, ou melhor, celebração daquilo que nasce da postura mística. A saber: a certeza indizível do sagrado.
Nesta dinâmica, o cinema emerge — e, de alguma maneira, renasce — como arte que existe a partir de uma contradição insolúvel. Por um lado, na sua origem está a vontade, porventura a utopia, de dar a ver o mundo à nossa volta; por outro lado, o exercício dessa vontade desemboca sempre em alguma forma de invisível.
O invisível, a imagem ausente, não é o mesmo que o sagrado, mas uma espécie de cálculo das suas probabilidades. O cinema escapa, assim, a essa ideologia mediática que todos os dias aplica as imagens de modo redundante e tautológico, como se nelas, e com elas, esgotássemos a pluralidade do mundo, renegando a exuberância da vida e encerrando a morte em obrigatório luto colectivo.
Há mais mundos — literalmente, e não necessariamente do lado do visível. Pathos Ethos Logos reconhece essa imperfeição humana, arriscando existir como se o cinema nele começasse (ou recomeçasse do zero). Podemos lembrar exemplos de filmes tocados pelo mesmo torpor filosófico e a mesma vertigem formal: Noite e Nevoeiro (1956), de Alain Resnais, Número Dois (1975), de Jean-Luc Godard, ou Inland Empire (2006), de David Lynch. Aí, o cinema define-se como infinita discussão do tempo, da contabilidade das suas regras, dos intervalos das suas excepções.