Ruben Östlund [FOTO: Jean-Louis Hupé / FDC] |
Como se prova, a demagogia compensa...
Aliás, pedindo desculpa pela ironia sedutora, ainda que inconsequente, importa reconhecer que o mundo do cinema, de quem o faz a quem o comenta, de quem o produz a quem o difunde, vive marcado por clivagens radicais.
Mais exactamente, do meu ponto de vista, considero que o júri do Festival de Cannes, presidido por Vincent Lindon, atribuiu a Palma de Ouro a um filme medíocre (Triangle of Sadness, de Ruben Östlund), alicerçado num vazio de ideias cinematográficas, disfarçado com um velho cliché moralista: representar os ricos através de caricaturas escatológicas, eis o que basta para construir um meritório discurso político e, como parece ser reconhecido por muitas pessoas respeitáveis, elaborar uma importante declaração cultural...
Para a história, será útil registar também alguns dos títulos que Lindon e os seus pares acharam por bem não premiar — este texto está publicado no Diário de Notícias (29 maio), com o título 'Ruben Östlund ganhou segunda Palma de Ouro'.
Nas previsões que agitaram os dias finais de Cannes, antes da cerimónia de entrega de prémios da 75ª edição do maior festival de cinema do mundo (sábado, ao começo da noite), dir-se-ia que havia uma divisão entre os “humanistas”, celebrando as emoções à flor da pele de Close, do belga Lukas Dhont, e os “experimentalistas”, apaixonados por Pacifiction, parábola política do catalão Albert Serra.
Feitas as contas, nenhuma das tendências viu satisfeitas as suas escolhas pelo júri presidido pelo actor francês Vincent Lindon: a Palma de Ouro foi para Triangle of Sadness, realização do sueco Ruben Östlund resultante de uma coprodução internacional (Suécia/França/Alemanha/Reino Unido/EUA). Para a história, ele entra na galeria dos “repetentes” da Côte d’Azur, uma vez que já tinha arrebatado a Palma de Ouro em 2017, com O Quadrado.
Como Östlund disse no seu agradecimento, Triangle of Sadness nasceu do propósito de “fazer um filme que interesse o público, que o provoque e faça reflectir.” E só lhe poderemos dar razão: tendo em conta que o capítulo central encena um cruzeiro de luxo que tem como momentos emblemáticos uma sinfonia de vómitos dos passageiros e a explosão dos canos de esgoto do barco, convenhamos que o filme consegue fazer-nos reflectir sobre o que significa, afinal, ser consagrado com o prémio máximo de Cannes…
Close recebeu o Grande Prémio (nº 2 na hierarquia do palmarés), “ex-aequo” com o policial Stars at Noon, produção falada em inglês dirigida pela francesa Claire Denis. Também repartido foi o Prémio do Júri, atribuído a EO, do polaco Jerzy Skolimowski, e Le Otto Montagne, do casal belga Félix Van Groeningen/Charlotte Vandermeersch, adaptando o romance do italiano Paolo Cognetti (editado no mercado português).
Apesar de tudo, esta “duplicação” parece reflectir a vontade de distinguir duas abordagens singulares das relações entre seres humanos e natureza. No caso de EO, tais relações passam pela personagem de um burro — o título é uma onomatopeia do seu zurrar —, valendo a Skolimowski o momento mais saboroso e descomplexado da cerimónia, fazendo questão em identificar pelos nomes os seis animais que interpretaram a sua personagem: “Quero agradecer aos meus burros” (e despediu-se com uma impecável imitação da voz do animal).
A escolha de dois dos premiados terá envolvido uma clara mensagem política. Assim, a iraniana Zar Amir-Ebrahimi foi distinguida como melhor actriz em Holy Spider, de Ali Abbasi, inspirado no caso verídico de um “serial killer” da cidade de Mashhad que escolhia as suas vítimas entre prostitutas da rua — como ela referiu, para lá odisseia profissional e emocional que o projecto envolveu, este é um filme “impossível de mostrar no Irão”. Por sua vez, Tarik Saleh ganhou o prémio de argumento com Boy from Heaven (que também realiza): retratando um caso de fundamentalismo religioso no Egipto, Saleh, nascido na Suécia, de pai egípcio, lembrou que ele próprio está impedido de ir ao seu “segundo país” (o Egipto, precisamente).
Imprevisto também terá sido o prémio de realização para o coreano Park Chan-wook, por Decision to Leave, um policial marcado por desmedidas ambições formalistas. Enfim, surpresa total foi o Prémio Especial do 75º Aniversário (não estava anunciado), dado a Tori e Lokita, mais um drama subtil dos irmãs Dardenne, da Bélgica. Ainda para a história, Vincent Lindon e os seus jurados deixaram de fora os filmes de David Cronenberg, Arnaud Desplechin, Cristian Mungiu, Saeed Rustaee, Léonor Seraille, Kirill Serebrennikov e Valeria Bruni Tedeschi… Não era fácil, mas conseguiram.