O lançamento de Km 224 teve um belo contraponto na edição em DVD de Perdido por Cem, primeira longa-metragem de António-Pedro Vasconcelos cuja estreia aconteceu há quase meio século — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 abril).
Em paralelo com o novo filme de António-Pedro Vasconcelos, Km 224,podemos encontrar o DVD da sua primeira longa-metragem, Perdido por Cem, cuja estreia aconteceu há 49 anos (9 de abril de 1973, no cinema Satélite, em Lisboa). Trata-se de mais uma edição conjunta da Academia Portuguesa de Cinema e da Cinemateca Portuguesa: um impecável trabalho de restauro que, além do prazer da (re)descoberta, nos permite estabelecer uma sugestiva ponte temática com Km 224.
Mais do que um “tema”, o quotidiano das relações humanas é, na trajectória do cineasta que também assinou, por exemplo, O Lugar do Morto (1984), Jaime (1999) e Call Girl (2007), um espaço de fascinantes paradoxos. Desde logo, porque a vida comum, na sua repetição e banalidade, atribui a cada ser humano um lugar preciso, seja ele familiar, profissional ou social; depois, porque essa “naturalidade” envolve um jogo de aparências, ou mesmo de equívocos, que faz com que a acção de cada filme seja, de uma só vez, uma descoberta existencial e uma aventura moral.
A família de Km 224 toca-nos pelo facto de, sendo “igual a todas as outras”, se revelar uma pequena tribo de laços e rupturas irredutíveis. Ao mesmo tempo (ou vindo de outro tempo), o Artur de Perdido por Cem é um jovem que, na procura de uma identidade, reflecte o misto de ansiedade e paixão de toda uma geração assombrada pelas atribulações de um destino português, demasiado português.
Daí o valor simbólico de José Cunha como intérprete de Artur [na capa do DVD]. Imagem fugaz do cinema português, há nele a singularidade de uma presença capaz de sustentar a duplicidade de uma genuína personagem: por um lado, emana de um contexto preciso, emprestando ao filme o valor próprio de testemunho de uma época; por outro lado, as suas vivências não o encerram no seu próprio tempo, conferindo-lhe uma dimensão emocional que transcende os limites do calendário em que o situamos.
Apropriando-se das palavras do escritor francês Paul Nizan, Artur recorda-nos o seu método: “Eu tinha acabado de fazer vinte anos e não deixarei que ninguém diga que é a mais bela idade da nossa vida.” Aliás, ele di-lo através da voz off que, afinal, graças a um jogo de espelhos propriamente cinematográfico, é a do próprio realizador. Por identificação do criador com a sua criatura? Talvez, mas tal identificação não esgota o misto de racionalismo e desejo que faz nascer um filme. François Truffaut, figura nuclear da Nova Vaga que inspirou a geração de António-Pedro Vasconcelos, disse-o de forma cristalina numa entrevista de 1982: “Escrevendo um romance ou um argumento, organizamos encontros, vivemos com as personagens: é o mesmo prazer, o mesmo trabalho, intensificamos a vida.”