Rabah Nait Oufella em Arthur Rambo: personagem humana, cenário virtual |
No filme Arthur Rambo, o cineasta francês Laurent Cantet expõe a tragédia da nossa comunicação virtual, dita “social” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 fevereiro).
O novo filme do francês Laurent Cantet, intitulado Arthur Rambo (há poucas semanas estreado entre nós, aliás em paralelo com o lançamento em França), nasce de uma dupla encenação. Aliás, quádrupla — para quem não tenha visto, é fácil explicar.
O nome que dá o título ao filme é uma personagem de ficção criada por Karim D., interpretado por Rabah Nait Oufella. Karim é um escritor francês de origem argelina cujo novo livro, O Desembarque, suscita grande admiração: evocando a chegada da sua mãe a França, nele se reconhece a virtude de expor, com concisão e emoção, questões que envolvem a capacidade de uma sociedade integrar as diferenças dos seus cidadãos e o direito de cada um desses cidadãos à sua própria história. Acontece que Karim leva uma “vida dupla”: no Twitter, sob o pseudónimo de Arthur Rambo, tem vindo a publicar mensagens marcadas por um “humor” recheado de racismo, anti-semitismo, misoginia e homofobia — o filme é sobre o escândalo dessa duplicidade.
Cantet utilizou como ponto de partida um escândalo real que abalou a sociedade francesa, suscitando muitos debates sobre os valores (ou a falta deles) das redes de comunicação a que deram o nome de “sociais”. Assim, em 2017, foi revelado que o escritor francês Mehdi Meklat mantinha, precisamente, uma intervenção “social” marcada por todas aquelas formas de agressão (utilizando o pseudónimo de Marcelin Deschamps). Para lá da discussão das perversidades ideológicas que o mundo virtual pode conter e exponenciar, as polémicas visaram também o espaço dos meios de informação, com várias personalidades a acusarem alguns jornalistas de terem conhecimento da duplicidade de Meklat sem a revelarem publicamente.
Há uma dimensão frustrante no filme de Cantet (hesitei em recorrer à ambivalência que as aspas poderiam sinalizar: “frustrante”). Porquê? Porque a nossa boa vontade espera, porventura exige, que encontremos pelo menos uma de duas hipóteses redentoras: ou descobrindo Karim a viver um processo de interrogação individual, ou assistindo a algum aparato social de purificação.
O certo é que não acontece uma coisa nem outra. Essa boa vontade mediática (dominante no nosso espaço social), segundo a qual tudo faz sempre sentido, tudo se pode encerrar numa significação formalmente única, moralmente apaziguadora, não faz parte de um filme como Arthur Rambo. A narrativa de Cantet está toda ela montada (de forma muito consciente, creio) para nos fazer sentir que a demarcação moral ou política dos factos narrados, fictícios ou não, sendo necessária, é sempre vulnerável e insuficiente.
Permito-me, por isso, sublinhar o óbvio, isto é, o jogo fonético proposto por Cantet quando recupera o apelido “Rambo”, consagrado por uma bem conhecida série de filmes protagonizados por Sylvester Stallone. Até porque esse jogo, interior à língua francesa, tem sido secundarizado, ou simplesmente ignorado, pela maior parte dos textos franceses sobre o filme. A saber: na pronúncia francesa, o nome da personagem totalmente imaginária, Arthur Rambo, confunde-se com o nome de Arthur Rimbaud (1854-1891), génio maldito da cultura francesa.
Há em Rimbaud a abstracção utópica, violentamente carnal, de um tempo outro a que, no limite, não saberemos como aceder. Da sua Obra Completa (publicada pela Relógio D’Água, 2018, com tradução de Miguel Serras Pereira e João Moita), lembro apenas estas linhas de um poema de março de 1870: “Irei sem dizer nada, sem pensar em nada: / Mas o amor infinito subirá no meu ser, / — Boémio, pela Natureza, de bem longa jornada, / Feliz, como se fosse comigo uma mulher.”
Que acontece, então? Será que Cantet está a promover a estupidez “social” que nos afoga, sugerindo, nem que seja por pueril ironia, que pode haver algum paralelismo entre o estilo do veterano do Vietname interpretado por Stallone e a escrita do poeta? Nada disso. A questão central de Arthur Rambo (o filme, entenda-se, não a personagem) é o próprio esvaziamento de qualquer conceito de comunicação.
O filme nunca se refugia na transformação de Karim D. em símbolo de um “mal” que podemos e sabemos identificar, como se fôssemos totalmente exteriores aos seus movimentos e mensagens. Talvez com uma excepção, logo na cena de abertura. Aí vemos Karim, tendo como fundo a parede verde de um estúdio de televisão, aguardando o início de uma entrevista — como bem sabemos, essa superfície verde (chroma key) permite inserir em fundo uma qualquer imagem, criando um contexto virtual para uma personagem ou conjunto de personagens.
Dir-se-ia que Cantet situa Karim numa terra de ninguém que, tecnicamente, se confunde com o nosso espaço mediático de comunicação (ou será “comunicação”?). Isso não o santifica — longe disso. Empresta-lhe, aliás, uma dimensão de outro modo radical, profundamente inquietante: a de um ser humano que vive a especulação gratuita, paródica e obscena em torno da sua própria identidade como coisa normal. Ao contrário do poeta, ele é, de forma muito literal, um lugar comum.