Descerrando os Punhos reflecte uma lógica realista que, em anos recentes, tem marcado filmes de origens geográficas e culturais muito diversas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 fevereiro).
O cinema possui a capacidade de nos fazer participar do desconhecido — como se lá estivéssemos… Enfim, não todo o cinema, mas alguns filmes que sabem enraizar-se numa conjuntura particular para lhe conferir a intensidade e as emoções do universal. Assim é Descerrando os Punhos, de Kira Kovalenko. Assim é, em particular, Ada, uma jovem a viver entre um emprego precário e a frieza autoritária do pai, composta pela notável estreante que é Milana Aguzarova (foi uma das grandes revelações de Cannes/2021).
Estamos perante mais uma manifestação exemplar de uma lógica realista que, em anos recentes, tem marcado filmes de origens geográficas e culturais muito diversas. A par de Kovalenko, lembremos, também na Rússia, dois títulos admiráveis de Kantemir Balagov: Tesnota (2017) e Violeta (2019).
O realismo, entenda-se, nada tem que ver com a estética pueril, misto de aceleração e “voyeurismo”, a que as linguagens dominantes do espaço televisivo nos habituaram. A sua construção começa, não na mera reprodução (um olhar não reproduz o que quer que seja, elabora uma visão), mas sim no estabelecimento de uma relação.
Relação com quê? Pois bem, com o lugar que se filma e, claro, com as personagens e os seus intérpretes. Somos, assim, conduzidos ao interior da região da Ossétia (onde Kovalenko cresceu) como quem descobre um cenário habitado por uma instabilidade que começa por resistir a qualquer decifração. Descerrando os Punhos vai-se consolidando através da agilidade de uma câmara paradoxal: por um lado, tudo se passa como se estivéssemos a assistir a uma reportagem apostada em desvendar uma realidade labiríntica; por outro lado, os movimentos dessa câmara são sempre conduzidos (e, de algum modo, justificados) pela “colagem” aos corpos dos actores.
Este é, enfim, um realismo eminentemente físico, enredado num aqui e agora que o cinema parece revelar em estado nascente — tão estranho e tão íntimo. Para usarmos uma expressão ligada à cinefilia, apetece dizer: tão longe, tão perto.