terça-feira, fevereiro 15, 2022

Da fantasia teatral à tragédia social

Bradley Cooper em cenários da Grande Depressão:
uma personagem visceralmente trágica

Sem renegar o seu gosto pelo fantástico, Guillermo del Toro consegue, com Nightmare Alley - Beco das Almas Perdidas, um retrato inesperado e fascinante do tempo da Grande Depressão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 janeiro).

Rezam as crónicas que a primeira adaptação cinematográfica do romance Nightmare Alley, de William Lindsay Greshman, foi recebida com um misto de respeito e estranheza. Lançado em 1947 (um ano depois da publicação do livro), o filme realizado por Edmund Goulding, com Tyrone Power no papel central, encaixava nos modelos do cinema “noir”, mas encenando um universo pouco típico do género: uma feira de fenómenos "surreais", incluindo adivinhação do pensamento dos clientes… A estranheza foi tanto maior quanto Power arriscava uma mudança da sua imagem de marca, ele que até aí fora símbolo de aventura mais tradicionais e menos inquietantes.
Passados 75 anos, a versão assinada por Guillermo del Toro parece “sofrer” do mesmo problema de inadequação em relação aos modelos correntes de cinema (dito) fantástico — o que, entenda-se, lhe confere um fascínio muito especial. Não estamos, de facto, perante o esquematismo “metafórico” de alguns dos seus títulos, incluindo O Labirinto do Fauno (2006). E também não se trata de acumular efeitos (pouco) especiais como acontecia no desastroso Batalha do Pacífico (2013).
Este Nightmare Alley — estreado com o subtítulo Beco das Almas Perdidas, já utilizado para a produção de 1947 — ilustra mesmo um “desvio” na lógica dramática do trabalho de Del Toro. Digamos que encontramos aqui a pulsão poética de A Forma da Água (2017), mas com uma elabora contenção simbólica: tudo o que poderia funcionar como “passagem” para um universo fantasioso e, nessa medida, anti-naturalista, transfigura-se, agora, em desencantado realismo.
Para tal contribui um leque de magníficos colaboradores, incluindo Dan Laustsen (fotografia), Tamara Deverell (cenografia) e Luís Sequeira (guarda-roupa): há uma vibração muito física de todos os elementos que nos faz sentir os cruéis contrastes da América da Grande Depressão, em vésperas da Segunda Guerra Mundial. Seguimos, assim, a saga de Stanton Carlisle, composto com requintado pormenor por Bradley Cooper, empregado da feira com um passado oculto que se transforma em especialista de adivinhação nos salões de hotéis de luxo. Há nele um assombramento trágico: especialista no logro, a ponto de se encenar em contacto com o “além”, Carlisle vai enfrentar as contradições de um tempo social em que a crueza dos factos será mais forte que as ilusões teatrais de uma qualquer transcendência.
Del Toro consegue a proeza de expor um território da mais absoluta bizarria — na primeira parte, além dos números de adivinhação, há uma mulher que suporta altas voltagens e um monstro humano (“geek”) que devora galinhas vivas… — sem nunca menosprezar os sinais específicos da época e, sobretudo, as singularidades das personagens. Nightmare Alley é mesmo um filme eminentemente clássico no cuidado com que trata todas as figuras secundárias, para mais servidas por uma galeria de brilhantes actores. Aqui encontramos, entre outros, Cate Blanchett, Toni Collette, Willem Dafoe, Rooney Mara e o sempre tão esquecido (e tão talentoso!) David Strathairn.