A história de Hollywood nas décadas de 1960/70 conta-se também através de algumas fotografias carregadas de simbolismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 janeiro).
Falecido no dia 15 de janeiro, contava 87 anos, o americano Steve Schapiro é um daqueles fotógrafos que recordamos, não apenas pela excelência das suas imagens, mas também através das memórias históricas que nelas estão inscritas. A começar por alguns momentos emblemáticos do combate pelos direitos civis dos afro-americanos na década de 1960, em particular as marchas entre as cidades de Selma e Montgomery, em 1965, em defesa do direito universal de voto. Foi nesse contexto que Schapiro obteve algumas das mais célebres fotografias de Martin Luther King, num registo realista que nunca foi incompatível com o valor iconográfico e a dimensão mitológica — esse material integra uma edição recente do livro The Fire Next Time (Taschen, 2017), de James Baldwin.
Porventura mais esquecido é o capítulo da vida profissional de Schapiro em que ele se moveu nos bastidores da produção cinematográfica, tendo mesmo, durante alguns anos, trabalhado sob contrato para os estúdios Paramount. Aliás, não se trata tanto de esquecimento como de um desconcertante apagamento “autoral”. Schapiro é, afinal, responsável por algumas das imagens mais fortes de Hollywood nas décadas de 1960/70, imagens que, no seu “anonimato”, passaram a integrar o património iconográfico da época — lembremos o exemplo do retrato de Marlon Brando acariciando um gato no papel de Vito Corleone, em O Padrinho (1972), de Francis Ford Coppola.
Para compreendermos a importância informativa e o valor simbólico de tais imagens, será importante recordar que a sua simples existência decorria de práticas criativas e promocionais que, infelizmente, a partir da década de 1990, os grandes estúdios foram abandonando, cada vez mais cedendo à “facilidade” dos registos digitais. A produção de fotografias das rodagens — normalmente distribuídas à imprensa em tiragens em papel, a preto e branco — era mesmo uma regra essencial na definição do “look” de cada filme.
No limite, tais fotografias podiam adquirir a dimensão de testemunho das convulsões do próprio imaginário cinéfilo, como aconteceu com o espantoso “portfolio” obtido durante a rodagem do derradeiro filme de Marilyn Monroe — Os Inadaptados (1961), de John Huston, com argumento de Arthur Miller —, resultante do trabalho de vários fotógrafos da agência Magnum, incluindo Henri Cartier-Bresson, Eve Arnold, Inge Morath, Elliott Erwitt e Ernst Haas.
Além de O Padrinho, Schapiro esteve, por exemplo, nas filmagens de Chinatown (1974), de Roman Polanski, e Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, mas são as suas fotografias de O Cowboy da Meia-Noite (1969), de John Schlesinger, que nos levam a estabelecer uma ponte entre o classicismo de Hollywood e as muitas e fascinantes convulsões de um tempo em que o conceito financeiro de “blockbuster” ainda não tinha imposto as suas matrizes de produção e difusão.
1969 foi um ano recheado de sugestivos contrastes. Assim, por um lado, Barbra Streisand (que Schapiro também retratou) protagonizava Hello, Dolly!, de Gene Kelly, empreendimento ainda ligado às glórias clássicas do género musical; por outro lado, Easy Rider, de Dennis Hopper, dir-se-ia um “western” virado do avesso, encarnava os temas, angústias e impasses dessa dinâmica de pensamento e acção que entrou para a história com a designação de contra-cultura.
O Cowboy da Meia-Noite começa por seguir a personagem de Joe Buck, empregado na cozinha de um restaurante do Texas que parte para Nova Iorque. O seu programa tradicional — descobrir o Sonho Americano na grande metrópole — vai transfigurar-se numa descida aos infernos em que terá como cúmplice Enrico “Ratso” Rizzo, doente e miserável, a viver de golpes mais ou menos ligados a esquemas de prostituição.
Não apenas pela abordagem muito crua das cenas de sexo, também pela frieza realista de lugares e ambientes, O Cowboy da Meia-Noite era, de facto, um objecto capaz de desafiar as convenções narrativas clássicas, o que não o impediu de arrebatar três Oscars, incluindo o de melhor filme de 1969 (desmentindo o lugar comum moralista segundo o qual a Academia de Hollywood se rege por um inamovível “conservadorismo”). A fotografia do seu cartaz — com Dustin Hoffman e Jon Voight interpretando, respectivamente, Rizzo e Buck — tem assinatura de Schapiro. Nela detectamos a militante paixão pela vibração concreta do mundo, além do mais reflectindo um tempo ainda alheio aos preconceitos contra o preto e branco.