quinta-feira, janeiro 13, 2022

Sidney Poitier, in memoriam

Sidney Poitier, Adivinha Quem Vem Jantar (1967)
— à esquerda da imagem: Katharine Hepburn e Cecil Kellaway

Com a morte de Sidney Poitier — ocorrida a 6 de janeiro, aos 94 anos [CNN] — desaparece uma personalidade essencial, porque carregada de simbolismo, na história das últimas seis décadas de Hollywood. Desde logo, porque ele foi o primeiro afro-americano a ser distinguido com o Oscar de melhor actor: aconteceu em 1964, graças à sua composição em Os Lírios do Campo, de Ralph Nelson.
Tal memória ajuda-nos, aliás, a relativizar uma certa formatação ideológica, indissociavelmente artística, com que, em anos recentes, tem sido (re)contada a história dos negros americanos no interior das ficções cinematográficas dos EUA. Assim, a noção de que a "valorização" das personagens afro-americanas é um fenómeno recente, ligado às convulsões sociais da "era Trump", resulta de uma cegueira história, no mínimo, irresponsável.
Para nos ficarmos pelo caso de Poitier, lembremos a sua presença em alguns títulos emblemáticos das décadas de 50/60, no interior de um cinema de muitas clivagens — era um cinema que estava, justamente, a questionar as memórias nacionais (no "western", por exemplo) e a redefinir muitas coordenadas dos seus retratos sociais (nos dramas e melodramas).
Vimo-lo, por exemplo, em Sementes de Violência (1955), notável retrato de uma escola em convulsão com assinatura de Richard Brooks, Porgy and Bess (1959), adaptação da ópera de George Gershwin por Otto Preminger, Chamada para a Vida (1965), drama psicológico que marcou a estreia na realização de Sydney Pollack [trailer], No Calor da Noite (1967), policial urbano de Norman Jewinson, ou ainda o emblemático Adivinha Quem Vem Jantar (1967), em que Stanley Kramer encenava a particularíssima convulsão de uma família branca cuja filha decide apresentar aos pais o seu namorado negro.
São referências históricas que nos recordam algo de muito básico: não é possível conhecer a representação cinematográfica dos afro-americanos como se tal assunto tivesse sido gerado pelos filmes que descobrimos nos últimos seis meses... A herança de Sidney Poitier recorda-nos uma velha e muita básica lição: fazer história (dos filmes ou do que quer que seja) não é o mesmo que procurar no passado a "reprodução" dos temas do nosso presente.