Hollywood, 1947: Natalie Wood no filme O Fantasma Apaixonado, de Joseph L. Mankiewicz |
O novo West Side Story, de Steven Spielberg, conduz-nos às memórias trágicas de Natalie Wood, intérprete de Maria na versão de 1961 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 dezembro).
A estreia do prodigioso West Side Story, de Steven Spielberg, tem suscitado, naturalmente, as mais diversas evocações da primeira adaptação cinematográfica do musical de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, assinada por Robert Wise e Jerome Robbins. É certo que, como se pode ler no genérico final, Spielberg toma como referência a encenação original da Broadway (estreada em 1957, com coreografia de Robbins). Seja como for, é inevitável que se desenhe uma ponte artística e uma cumplicidade simbólica entre os dois títulos — sem esquecer que o West Side Story de Wise/Robbins foi um dos fenómenos de 1961, tendo arrebatado uma dezena de Oscars da Academia de Hollywood, incluindo o de melhor filme do ano.
Desta vez, curiosamente (e felizmente, digo eu), têm sido escassos, para não dizer inexistentes, os paralelismos “obrigatórios” entre os intérpretes dos dois filmes. O conceito segundo o qual o cinema existe como uma repetição automática dos mesmos padrões de produção e valores artísticos não passa de uma forma pueril de ignorância histórica. Em boa verdade, creio que há uma razão suplementar para tal escassez, em particular a propósito da personagem de Maria: no filme de Spielberg, Rachel Zegler será brilhante (e é mesmo, do meu ponto de vista), mas não há lógica ou especulação que possa caracterizar a sua composição como uma “derivação” da Maria que Natalie Wood (1938-1981) compôs em 1961.
Bem sabemos que as memórias cinéfilas são cada vez mais vulneráveis, substituídas por uma visão mediaticamente muito poderosa que tende a descrever o passado dos filmes como uma colecção de peripécias anedóticas e pitorescas. Dir-se-ia que a memória de Natalie Wood resiste a aquietar-se nos lugares-comuns de tal paisagem. A sua morte prematura, aos 43 anos de idade, num acidente nunca totalmente esclarecido num barco ao largo da ilha de Santa Catalina, Califórnia, tornou mesmo a sua biografia uma tragédia para sempre em aberto — como se fosse impossível encontrar uma morada estável para a sua herança artística.
Se procuramos uma explicação psicanalítica para tal estatuto (e porque não?), podemos começar pela sua existência como estrela infantil. Para nos ficarmos por uma referência emblemática, lembremos a sua participação, ainda antes de completar dez anos, na obra-prima de Joseph L. Mankiewicz, The Ghost and Mrs. Muir / O Fantasma Apaixonado (1947), melodrama surreal em que Natalie Wood surgia como filha da Sra. Muir referida no título, interpretada por Gene Tierney.
Ora, toda a infância de Natalie Wood foi vivida e, de algum modo, encenada como ante-câmara de um destino compulsivo como ícone de Hollywood. No livro Natasha - The Biography of Natalie Wood (Harmony Books, Nova Iorque, 2001), a autora Suzanne Finstad empenha-se em desmontar essa maldição identitária, começando mesmo por apresentá-la como um acidente fantasmático: “Natalie Wood nunca existiu realmente. A actriz com esse nome foi uma criação fictícia da sua mãe, figura genial e doentia conhecida por vários nomes próprios, sobretudo Maria. A descoberta de Natalie, o porquê da sua entrada ainda criança no ‘show business’, a sua história, tudo decorreu de uma trama de mentiras tecida por Maria, iniciada ainda antes de Natalie nascer.” Finstad cita mesmo uma frase terrível, porventura terrivelmente amorosa, da mãe de Natalie reagindo à morte da filha: “Deus criou-a, mas eu inventei-a.”
Quando surgiu em West Side Story, Natalie Wood participara já em duas dezenas de filmes, incluindo o clássico Fúria de Viver (1955), contracenando com James Dean, momento cristalino entre a adolescência e a idade adulta. De qualquer modo, 1961 foi um ano fundamental na sua transfiguração, surgindo também em Esplendor na Relva, de Elia Kazan, preciosidade sem equivalente na história de Hollywood em que contracenava com o estreante Warren Beatty.
Nos momentos fulcrais da sua filmografia — recordo ainda o exemplo de A Flor à Beira do Pântano (1966), de Sydney Pollack, inspirado numa peça em um acto de Tennessee Williams (This Property Is Condemned), com um argumento em que participou Francis Ford Coppola —, Natalie Wood preserva essa comoção radical que nasce da dificuldade de identificação do próprio lugar a que pertence, ou pode pertencer. Na biografia escrita por Finstad são citadas as palavras com que reagiu durante a visita à mansão que, em finais da década de 50, ela e o marido, o actor Robert Wagner, compraram no coração de Beverly Hills: “Não tinha qualquer opinião sobre o tipo de mobília que queria. Tinha-me preocupado sempre com o facto de ser tímida, com o que os outros poderiam pensar de mim, ou o que eu poderia dizer, de tal modo que ao entrar numa sala nunca reparava em nada.”