segunda-feira, janeiro 17, 2022

Licorice Pizza
— memórias do paraíso perdido

Cooper Hoffman e Alana Haim

Paul Thomas Anderson, realizador de Magnólia, revisita os lugares da sua adolescência, em San Fernando Valley, reencontrando uma emoção romanesca que cristaliza nos actores estreantes: Alana Haim e Cooper Hoffman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 dezembro), com o título 'Paul Thomas Anderson filma o paraíso perdido'.

Paul Thomas Anderson
Eis uma sugestiva conjuntura cinematográfica. O final do 2021 fica marcado por dois filmes americanos com importantes componentes musicais. Primeiro, foi West Side Story, de Steven Spielberg, por óbvias razões: nele se revisita o musical de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, estreado na Broadway em 1957. Agora, surge Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson, crónica das atribulações amorosas de dois jovens, Alana Kane e Gary Valentine, em que as canções, muito mais do que um pano de fundo, funcionam como elementos orgânicos de uma complexa e fascinante trama narrativa.
A lista de maravilhas que nos são dadas a escutar inclui July Tree (Nina Simone), But You’re Mine (Sonny & Cher), Peace Frog (The Doors), Life on Mars? (David Bowie) ou If You Could Read My Mind (Gordon Lightfoot)… Sem esquecer o belíssimo tema instrumental, também intitulado Licorice Pizza, composto por Jonny Greenwood, colaborador habitual de Paul Thomas Anderson.
Estamos perante uma memória romanesca que prolonga as componentes (quase) autobiográficas de uma parte significativa da filmografia de Anderson, nascido em Los Angeles, em 1970. San Fernando Valley, a zona da sua adolescência onde, aliás, continua a habitar, ressurge em Licorice Pizza — lembremos que aí se desenvolvia também a teia de personagens e canções de Magnólia (1999) — como cenário emblemático de um modo de viver em que os desejos particulares de cada personagem se enredam sempre com uma peculiar lógica comunitária. Mais ainda: “Licorice Pizza” é o nome de uma lendária cadeia de lojas de discos da Califórnia do Sul.

Memórias de 1973

No período de pré-produção, Anderson fez questão em mostrar aos actores principais o filme American Graffiti, que George Lucas realizou em 1973, antes de se lançar nas suas aventuras galácticas (A Guerra das Estrelas surgiria quatro anos mais tarde). Aí podemos encontrar também uma memória californiana da juventude, neste caso da cidade de Modesto, durante as férias de verão de 1962. Além de que 1973 é, precisamente, o ano em que decorre a acção de Licorice Pizza.
Para lá da memória temática, o realizador, também argumentista, terá querido sublinhar o valor fulcral do trabalho dos actores. Assim, em American Graffiti, podemos encontrar vários nomes que, de uma maneira ou de outra, iriam adquirir especial evidência na história de Hollywood: Richard Dreyfuss, Ron Howard, Harrison Ford… No caso de Licorice Pizza, deparamos com dois estreantes que são, simplesmente (apetece dizer: radicalmente) as revelações do ano: Alana Haim e Cooper Hoffman, respectivamente como Alana e Gary.
Também aqui o circuito de heranças e cumplicidades é revelador. Assim, Alana Haim é uma das três irmãs da banda Haim, com a qual Anderson tem mantido uma admirável colaboração artística, realizando vários dos seus telediscos (todos disponíveis no YouTube, sugiro, para começar, Now I’m In It). Cooper Hoffman é filho do grande Philip Seymour Hoffman (1967-2014), actor que Anderson dirigiu várias vezes, desde o seu primeiro filme, Passado Sangrento (1996), até The Master - O Mentor (2012).
Mais do que nunca, o cinema de Anderson vive, aqui, da vibração muito física dos actores. Os sobressaltos da sua energia, a exposição contraditória dos seus afectos contaminam o olhar (e os movimentos) de uma câmara de filmar que participa em todos os instantes com a proximidade ambígua de uma verdadeira personagem. Nesta época de tantas máscaras digitais, desvalorizando o labor específico dos actores, redescobrimos, assim, o valor insubstituível da presença humana, reavivando um classicismo de Hollywood que tem a sua matriz tutelar na obra de Elia Kazan, o autor que, há 60 anos, realizou Esplendor na Relva.

Geografia & cultura

Gary e Alana conhecem-se no dia em que os alunos do liceu de Gary estão a ser fotografados para o álbum de curso. Ela tem 25 anos e trabalha como assistente de fotografia, ele tem 15 anos e, ali mesmo, convida-a para sair… O pitoresco do resumo está longe de fazer justiça à riqueza emocional dos labirintos que Licorice Pizza vai percorrendo, incluindo um jantar em casa de Alana (com as irmãs e os pais interpretados por toda a família Haim) e o envolvimento de Gary num negócio de colchões de água…
Paul Thomas Anderson consegue colocar em cena um universo geográfico e cultural — em boa verdade, um sistema de vida — em que se cruzam, numa espécie de magia redentora, sempre ameaçada, a banalidade do quotidiano e a sua transfiguração pelas imagens. A esse propósito, repare-se como as vivências de Alana e Gary são pontuadas pelos encontros com personagens do mundo do cinema interpretadas por actores tão conhecidos como Bradley Cooper ou Sean Penn.
Dir-se-ia que Licorice Pizza reencontra o paraíso perdido de um cinema primitivo em que a presença dos actores, o calor da pele e a verdade infinita dos rostos, dispensam qualquer efeito especial. Na certeza de que esse primitivismo possui, aqui e agora, a urgência de uma vanguarda.